17 Sep
17Sep

“O Diabo de cada dia assusta-nos quando nos coloca frente a frente com os diabos que o constructo social infiltrou em nossas relações pessoais e familiares. Matamos um diabo por dia, enfrentamos a cada hora, minuto, segundo, um diabo que nos amedronta, desafia, traumatiza e, quando ele vence, nos mata”. 

 

 

 

Longa de Antonio Campos está disponível pelo serviço de streaming da Netflix. Ambientado nos arredores de Ohio na década de 50 o longa apresenta um enredo perfeito e todo concatenado com a trama e o suspense que envolve o telespectador. Não é um enredo que nos prende. É preciso um esforço hercúleo e consciência crítica para acompanhar a trama e deixa-la que nos prenda. Com um movimento lento, o filme tenta nos manter tranquilos enquanto extermina inocentes vítimas da crueldade e da violação da fé e do corpo.

Cenas bucólicas nos transportam para um ambiente de clima sereno e tranquilo em que um pano de base religioso-cristã nos insere no cotidiano das pessoas. O recurso dos letreiros semelhantes ao início do cinema nos dá uma nostalgia ao relembrar as alegrias da evolução da sétima arte. O ambiente de toda a trama é bem carregada de sotaque rural e clima do Meio-Oeste apresentando até mesmo a forte violência de forma “confortável” (se é que isso seja possível).

Até em que ponto a religião pode ser benéfica, não-violenta e correta? Essa é uma pergunta que nos instiga e incomoda. A trama apresenta uma corrupção de valores morais que, levados a certos níveis de compreensão humana pode iludir e matar. Matar. Literalmente matar. A religião é política em seu discurso mais perverso e cruel. Sempre pautada na política da troca e na teologia da prosperidade, ela faz-nos ludibriar com a realidade concreta da vida que é bem mais perigosa.


CUIDADO! A partir daqui o texto terá spoilers

Se você ainda não assistiu ao filme e não quer receber spoilers, pare sua leitura por aqui e vá assistir ao filme. Depois volte e confira nossa opinião. O longa The Devil All The Time é baseado na obra de Donald Ray Pollock. A primeira surpresa do longa foi quando ouvimos o próprio Pollock narrando o filme. Uma narrativa que nos prende e nos faz querer não perder nenhum detalhe. Narrativa bem construída e muito bem apresentada.

Até em que ponto a guerra nos influencia e de que maneira pode nos afetar? Todos os personagens carregam o estigma da guerra, seja no corpo ou na própria vivência. Num contexto pré e pós-guerra é inevitável não ser afetado. O longa de Campos é amedrontador ao revelar com tanta clareza e sem rodeios o quão uma guerra ou uma crise pode afetar profundamente toda uma comunidade.

Quantas famílias são desestruturadas nesse contexto. Os elementos prazerosos de uma família reunida e cristã também chamam a nossa atenção. A própria cultura da é poluída pelo sangue e contaminada pelas bombas da guerra.


Melhores atuações

Em contrapartida a uma história que se arrasta para ter um final impactante, o elenco protagonista nos presenteia com atuações memoráveis. O público, pela primeira vez teve contato com um pastor macabro, sujo, imoral, abusado, assassino, violador da fé e pessoa humana. Robert Pattinson interpreta o pastor Reverendo Preston Teagardin. Um jovem bonito mas de semblante sério e ríspido. Sem muitas aberturas para amizades e sorrisos.

Pattinson apresenta uma religião controladora, conservadora (claro, apresentanto um contexto epocal em que a história se passa). Uma prática doentia e de abuso do poder. Sua figura é pública, respeitada e adorada. O povo vê nele o sinal da fé e a vontade de Deus. Uma vontade divina que daria a ele o percalço para que violentasse as jovens do lugar. A cena em que a meia irmã de Arvin, após descobrir sua gravidez, fruto de um “ato sexual divino” com o Rev. Preston suicida enforcando-se é revoltante.

Tom Holland também não nos decepciona. Um dos seus mais memoráveis papeis de sua inicial carreira. Não deixe de conferir nosso artigo sobre a carreira de Holland. Holland é Arvin Russell. Perdeu o pai e a mãe no mesmo dia. Ele suicidou logo após enterrar a mãe vítima de um câncer. É um incômodo descomunal a maneira que Willard Russell (Bill Skarsgard) encara a fé. Uma fé baseada no milagre repentino, no poder de troca e sacrifício. E o pequeno Arvin bebe, mas com um gosto amargo, essa fé praticada pelo pai. Percebe-se que ela não será item de peso nas suas decisões adultas.


Cenas memoráveis, belos retratos fotográficos

“Algumas pessoas nasceram só para serem enterradas”. De aspecto melancólico, é preciso certa classe para sobreviver às mais de 2 horas de produção. O filme nos presenteia com cenas desenhadas das estradas, parques, florestas e até mesmo o pacato cemitério. O que pesa e muito na avaliação são as sucessões incontroláveis dos fatos inesperados, pois nos aparentam serem improvisados. A coisa espontânea é boa, no entanto, quando se exagera nesse recurso, fica monótono.

O Meio Oeste entre Ohio e West Virginia nos alegra com cenas memoráveis: a casa dos Russell no alto da colina; o campo verde que circunda a capela do pastor; o jogo de cenas para o alto narrando o movimentar suave das nuvens entre as copas das árvores; a cena do lago à beira de uma barragem de pedras são algumas das cenas que ficarão em nossa memória como lembrança agradável.

O pouco do movimento urbano tranquilo e pacificador (apesar do ar exalar o odor da guerra latente) é mostrado em cenas curtas, mas, também o suficiente para relatar por exemplo o universo de Charlotte Russell (Haley Bennett), a mãe de Arvin. Uma garçonete que conheceu Willard no retorno da guerra e com ele se casou. Não muito dotada dos preceitos da fé, herança da família Russell, o filme se preocupou em narrar a harmonia e alegria da família reunida.


A intrigante jornada de Arvin

O personagem de Tom Holland é apresentado com um início, meio e fim. Desde jovem, ele bebe a prática religiosa do pai e também entra em contato com o trauma da guerra que ele carrega. Questões sociopsicológicas não entram em cena, mas por trás das cortinas percebemos o quanto esse trauma pós-guerra influencia na formação da personalidade de Arvin.

O desfecho de sua jornada assassinando o pastor pelo o que fez com sua irmã e o crime ocorrido com o casal de serial killers Sandy e Carl Henderson (Riley Keough e Jason Clarke) é praticante o resultado de tudo o que Arvin construiu desde sua infância órfã e convivência com os avós. Ainda se inclui a morte do Sheriff Lee Bodecker (Sebastian Stan) vítima de mais um acaso desse longo enredo.



“Isso não são brinquedos meus jovens, são armas. Sinto que uma batalha se aproxima. Nós nunca devemos entrar numa luta, mas existem batalhas que são necessárias em que tenhamos que lutar”

(Crônicas de Nárnia: “O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa”, versão adaptada pro cinema de Andrew Adamson, 2005)


 

 

Por Dione Afonso

Jornalismo PUC-Minas

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