14 Feb
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O cinema noir tem seu respeito e admiração. Famoso por suas cenas sutis de clima escuro que contracena o branco com o preto e de ambiente enigmático bruxuleante lançando sombras dramáticas, seu estilo tem se tornado um grande sucesso desde as décadas de 1940 e 50. Com forte presença da ambiguidade em cena que vai desde a construção de seus personagens até a ambientação com seus jogos de luzes e manipulação, sua fotografia que se aproxima ao macabro revela grande intensidade ao tratar de assuntos profundamente humanos, mas, assustadoramente selvagens. 

Nisso, deparamo-nos com O Beco do Pesadelo. Remake de Guilhermo Del Toro, um cineasta mexicano que encontrou no film noir sua casa, sua obra de 2021 adapta, pela segunda vez, a literatura de Willian Lindsay Gresham, de 1946, O Beco das Ilusões Perdidas. Em 1947, a adaptação cinematográfica foi realizada por Edmund Goulding e foi traduzido por O Beco das Almas Perdidas. Mais de 70 anos separam as duas produções. Del Toro assina o roteiro ao lado de Kim Morgan, sua esposa. Ambientado em 1941, ambiente fortemente marcado pela Segunda Guerra Mundial, estamos diante de uma obra questionante: até em que ponto o homem deixa de ser humano e se torna uma besta, um animal, um indigente?


A exaltação do homem 

Com protagonismo de Bradley Cooper, que vive o misterioso Stan Carlisle, as cenas iniciais já nos introduzem numa sequência de mistérios e de perguntas que precisam ser respondidas. Carlisle surge saindo de uma casa em chamas, e aparece diante de um circo montado no meio do nada (como eram as experiências circenses naquela época). Ali, há o primeiro contato com uma espécie de vida subumana, quando, numa jaula, Carlisle se assusta com um homem que é chamada de fera, adestrado e treinado para viver o pior que um ser humano pode-se chegar. 

Em contraste com o pior, Carlisle parece se reerguer e buscar o que pode ser melhor para si e para o lugar que o acolheu. Carlisle conhece duas figuras femininas fundamentais para sua exaltação: a doce Molly (Rooney Mara) que faz um número envolvendo eletricidade e a carismática Zeena (Toni Collette), uma vidente que, com seu parceiro, Pete (David Strathairn), fazem o número da clarividência, na qual tentam descobrir segredos ocultos das pessoas. Carlisle, que, sozinho, encontra nessas duas figuras femininas, uma escada para se reerguer. Se ele busca isso, não fica claro, mas a fábula circense garante esse clima incógnito capaz de nos fazer pensar assim. 

No fundo, Carlisle não é um “zé ninguém”, como a maioria pensa que é. No fundo, ele apenas está seguindo seu caminho que ainda é misterioso para nós, mas muito claro para ele. Guilhermo Del Toro se apropria de um ambiente, cujo sua função primeira é vender gargalhadas e histórias cômicas, afim de nos enganar. Enquanto as cores do circo e grande número de pessoas nos distraem, Del Toro conduz Carlisle ao seu verdadeiro objetivo: a sua exaltação. Exaltação que o faz se desligar do beco em chamas no qual saiu e entrar numa nova vida, cheia de oportunidades. 


A queda do homem 

Guilhermo Del Toro foi o grande vencedor do Oscar em 2017 por A Forma da Água, levando quatro estatuetas para casa incluindo o de Melhor Filme e o de Melhor Diretor. Na obra de 2017 já vislumbramos o que seu estilo fílmico é capaz de provocar em nós nos fazendo até em que ponto tudo o que vivemos é amor e até em que ponto é conveniência. Carlisle agora, longe do circo, “herdou” de forma cruel os “dons” de Pete de “ler” os segredos da plateia. Mas ele buscava mais: sair do circo e ganhar os magnatas novaiorquinos. Se apaixonando por Molly, ele via nela a chance de ter ao seu lado uma parceira dos negócios e das falcatruas. O Beco do Pesadelo torna-se a partir do segundo ato, uma coleção de trambiques e roubos glamourosos. 

Sua sede por querer mais o afasta de Molly, que achávamos que a amava e o aproxima da verdadeira protagonista do filme: a psicanalista Lilith Ritter, vivida por Cate Blanchette, que deveria ter sido indicada, e com louvor, na Categoria de Melhor Atriz, pelo Oscar. Ritter percebe que o que Carlisle faz não é adivinhação, e nem mentalismo, mas é uma farsa que o faz se apoderar das piores fraquezas e dores das pessoas. Espreme-as até sair a última gota de sangue e vende a elas esperança. Uma falsa esperança. 

“O que diferencia o homem de uma fera?” Carlisle aparece no filme como um “zé ninguém” e termina como um ninguém sem nome. Um animal, uma besta. O ambiente do pós-guerra, destruído, abandonado, escancara diante de nós a mais profunda sujeira humana e o pior odor da podridão do mundo. A ganância cega-nos e a nossa decadência nos lança para o mais profundo poço da miséria e da inópia. Vender consolo para a alma pode nos custar muito caro. É irritar certos fantasmas que irão nos assombrar para sempre. 


Os pesadelos dos homens 

São os próprios homens que constroem seus sustos, medos e o que os atormentam. Os pesadelos são frutos e/ou resultados das falcatruas, da ganância e das buscas antiéticas que empreendemos durante nossas vidas. O Beco do Pesadelo explora o que de pior habita na alma do ser humano. E quando isso se externaliza, a guerra que eclode não é a de balas de canhões ou de trincheiras cheias de explosivos, mas é uma guerra mental que explora os piores sentimentos daqueles que nomeamos como inimigos e os destroçamos de dentro pra fora. A diferença é que nessa guerra, ninguém vence, ambos se destroem. 

O Beco do Pesadelo está indicado ao Oscar 2022 em quatro Categorias: Melhor Filme; Melhor Fotografia pelo belo trabalho de Dan Laustnen, Melhor Direção de Arte e o de Melhor Figurino pelas mãos de Luís Sequeira, que também esteve em A Forma da Água. No elenco, nós ainda temos Paul Anderson, Willem Dafoe e Richard Jenkins.




Por Dione Afonso  |  PUC Minas

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