15 Oct
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Scenes from a Marriage é uma minissérie sueca produzida e dirigida por Ingmar Bergman (1918-2007) em 1973. Bergman, sueco, tentou uma carreira para as telonas sem muito sucesso. Entre as décadas de 1950 a 1970, seus cinco longa metragens não aplacaram o gosto e opinião esperados. Bergman era um bom produtor e diretor, não restava dúvidas disso, portanto, ele encontrou nas telinhas, ou seja, nas adequações para TV o seu campo de atuação e trabalho profissional. 

Em Cenas de um Casamento, o casal Marianne (Liv Ullman) e Johan (Erland Josephson) contracenam uma vida conjugal regada a profundos diálogos e angustiantes monólogos que por vezes nos incomodam. Contento 6 episódios, a minissérie tornou-se o melhor trabalho da carreira de Bergman. Na trama, Marianne é uma advogada e Johan, um acadêmico e pesquisador. A narrativa se apoia num casal modelo de vida conjugal baseado e ancorado na estabilidade financeira, status quo, amigos saudáveis e vínculos sociais e na família estruturada. Um casal de classe média que formam o modelo de vida ideal há 10 anos dividindo o mesmo teto, a mesma mesa, a mesma cama... 

“A série trata como o ideal burguês de segurança corrompe a vida emocional das pessoas”, dizia Bergman. Hoje, quase 50 anos depois da obra de Bergman, o cineasta israelita Hagai Levi produz o remake de Cenas de um Casamento para o canal da HBO. O casal Mira e Jonathan são interpretados por Jessica Chastain e Oscar Isaac. Um show de atuação. Repetem o modelo de casal bem sucedido, ela é das empresas de tecnologia e startups e ele é do campo acadêmico, professor. No roteiro, uma estudante de psicologia aborda o casal numa entrevista tocando em assuntos mais sensíveis e íntimos como gênero, poliamor, machismo, empoderamento feminino, sexo... Jonathan vem de uma família judia ortodoxa e abandona tudo para a vivência do “amor moderno” ao lado de Mira. (A partir daqui há spoilers, ATENÇÃO!


Quando o universo de um é grande demais, o outro não cabe, se perde... 

Mira (Jessica Chastain) e Jonathan (Oscar Isaac), exemplo de casal bem sucedido se submete a participar de um trabalho de psicologia no qual a estudante realiza entrevistas abordando o tema do sucesso e felicidade conjugais. Ingmar Bergman trouxe o trabalho na década de 1973 e, mesmo com as perguntas invasivas, o remake da HBO agora aposta em diálogos, falatórios e discussões que nos fazem questionar até em que ponto um casamento é bem sucedido e feliz. Filhos, trabalho, aquele primeiro amor, sexo, amigos e encontros... até onde isso sustenta uma relação? 

O que percebemos nessa nova versão da Minissérie é que muita coisa está explicada demais, dita demais, discutida demais e sentida de menos, observada de menos... sentimos que certas coisas precisam ser caladas para que elas realmente falem com sua veracidade da situação. Ao contrário de Bergman, o diretor da nova versão, Hagai Levi não aceita o respiro do silêncio e aposta no falatório desgovernado culminando até numa cena desconectada da amiga de Mira em seu quarto. Qual o porquê daquilo ali? Não tivemos tempo de pensar. Levi não nos deu esse tempo. 

Inicialmente, o episódio piloto nos entrega boas atuações de Chastain e Isaac e isso nos conquista. Os dois funcionam como um casal apaixonados e em crise. Juntos. Dilemas como aceitar ou não uma nova gravidez; as expectativas de viver um “casamento aberto”; relações com amantes podem nos prometer boas cenas nos para os próximos capítulos. Contudo, somos imersos e afogados em meio a informações demais sem tempo para absorvê-las. Se hoje em dia, os casamentos caminham dessa forma, temos entre nós mais relacionamentos abusivos e tóxicos do que imaginamos. 


O não dito também dói e dilacera-nos por dentro 

Para tocar no assunto de uma gravidez não planejada, Mira realiza o procedimento abortivo e Jonathan pareceu condizente com a decisão. Mesmo tendo falado isso anteriormente, é preciso reafirmar: aquilo que é dito de muitas maneiras deixa de ser sentido uma única vez. Um cientista, um pesquisador ou um matemático é capaz de dizer quantas vezes coração bate por minuto, mas ele é incapaz de dizer quantos sentimentos cada batida jorra pelo corpo. 

O que parecia ter sido explicado, explanado e verificado por ambas as partes - pelo casal - não foi o suficiente na decisão final. Um casamento que sobrevive de aparências um dia perde a luta e morre antes da guerra acontecer. Que tipo de relação matrimonial precisa realizar um aborto para se salvar? Para sobreviver? Foi o questionamento que Mira derramou sobre Jonathan e isso o desmoronou. 

Abortos, traições, falta de esclarecimentos conjugais, vida a dois, paixões que me completam fora do casamento, filhos, compromissos familiares... tudo isso vira um emaranhado de cenas e contra-cenas. Tudo se ampara, mais uma vez, no sucesso profissional, promoção no trabalho, oportunidade de crescimento e conhecimento e regozijo naquilo que sabe fazer de melhor em sua profissão. E mais uma vez, o relacionamento, o amor, a família são jogados para o fundo do poço. Não está em segundo plano, o amor é lançado para mais de dez níveis abaixo do segundo plano. Mira e Jonathan vivem a tensão de uma possível separação e a discussão preocupa-se mais nas estratégias de convivência do que nos sentimentos. 


Cenas de um Casamento, cenas cotidianas dos relacionamentos atuais 

Quando os sentimentos explodem dentro de nós tudo fica grande demais. A cama fica grande, o quarto fica grande, a casa fica grande, a mesa fica grande demais. O tema do divórcio é mencionado nessa rotina confusa entre amor e trabalho. Mas o divórcio não é uma cura e nem a solução de problemas. O divórcio é mais para nos salvar do purgatório em que vivemos sofrendo condenados por nossas ações. Ele é a confirmação de que há uma ferida e ela não se curou. 

Objetivar aquilo que não se apresenta fisicamente é terceirizar a terapia pessoal e individual para resolver a nossa condição perturbada. “Nosso relacionamento se tornou um objeto”, e Mira afirma não se sentir segura nem no seu casamento e nem onde está atualmente e, nem em nenhum lugar desse mundo. Jonathan se perde na imensidão de sua casa e de seu corpo e se desvencilha do piloto automático tentando encontrar o sentido de tudo isso. “Não diga coisas que você não sente só pra provar que estamos no mesmo barco, porque não estamos”, afirma Jonathan. 

Num dos episódios mais enfadonhos e sem motivação é o penúltimo, no qual, nos entrega um mundo perdido e sem sentido. O universo de Mira é imenso, é grande demais, tão grande que não se dá conta de que existem outros à sua volta. Outros como o de Jonathan. Enquanto ela se perde na imensidão de sua existência e suas indagações, ele procura se encontrar na pequena parcela de que sua vida se encontra. Atualmente fazemos piada sobre “alguém considerar o outro como sua vida, seu mundo”. E enquanto Mira se perde na busca infinita em encontrar alguém pra chamar de “meu mundo”, o mundo de Jonathan só se preocupa em se encontrar em sua própria rua. 


Até onde vale alimentar um amor a dois? 

Exaustivamente Jonathan procura se recompor e superar o divórcio. No fundo do poço, Mira tenta entender cada passo que ela deu desde o dia do aborto até o momento que assinou aqueles malditos papeis consolidando a separação. Cenas de um Casamento entrega um forte momento de crise em uma relação conjugal: “mesmo nos amando e desejando um ao outro, é preciso ir contra os desejos e lembrar das feridas que o outro me causou”. 

Na atmosfera da discussão não é o diálogo que prevalece, a família vira uma metralhadora de verdades não ditas em uma década de relações conjugais que poderiam ter consertado muitas situações quando se verbaliza com a pessoa certa, no momento certo e da maneira certa. Hoje, numa situação delicada, num ambiente conturbado, e com uma Mira e um Jonathan perdidos e machucados, o pente da metralhadora foi descarregado como se o fim de uma guerra estava longe de acontecer. 

Ela sente na pele o que suas escolhas resultaram. Ele sente no coração o que a não escolha proporcionou a ele mesmo. Será que isso vai ter uma resposta positiva para os dois? 

Positivo ou não, a minissérie de Levi desperdiça o nosso tempo nos fazendo acompanhar uma vida chata, cheia de controvérsias, com pretensão de nos emocionar e nos ensinar algo. Não sabemos o que aprendemos com tudo isso. O resultado de Cenas de um casamento decepciona a vida conjugal de Mira e Jonathan, decepciona quem assiste. Os tons leves e frios foram significativos ao demonstrar um roteiro frio de um relacionamento ruído a cinzas escuras e mortas.




Por Dione Afonso  |  PUC Minas

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