12 Sep
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O gênero musical, quando incorporado a roteiros de histórias fílmicas, sempre dividiu conceitos, críticas, erros e acertos. Contar uma história recorrendo à música e a coreografias é ousadia, é sonho, é surpreender em novos cenários na sétima arte. É difícil até de chama-lo de gênero, visto que não vemos muito presente esse tipo de arte sendo representada nas premiações do cinema. Mas, é muito comum vermos cada vez mais presente, esse tipo de “contação de histórias” presente por trás das câmeras. Algo que era bastante restrito às histórias infantis das princesas e seus castelos protegidos por um dragão ou prisioneiras por uma bruxa má, a cada dia mais fica presente nas salas de cinema. 

Em 2021, entre erros e acertos, depois de nove anos longe das direções cinematográficas, o francês Leos Carax volta trazendo uma mistura de amor e ilusão, pop rock e dor em Annette. “Estamos prontos para começar”, inicia as primeiras já nos inserindo numa história regada a boas músicas e um grande show de interpretações. O duo dos Sparks já nos avisa que belas canções irão nos segurar até o fechar as cortinas desse show. 

Annette foi o longa que abriu o Festival de Cannes neste ano e trouxe para os críticos um ótimo produto, uma verdadeira obra de arte para ser contemplada e descrita. Um drama psicológico e doentio traz á flor da pele os sentimentos mais indecifráveis que ardem em nosso íntimo como a dor que não cessa. Uma experiência suidida e uma relação masculina tóxica e abusiva. Protagonizado por Adam Driver e Marion Cotillard, a história de Annette se desvencilha do convencional e se perde num amor intenso, mas raso. (Atenção: há spoilers a partir daqui).   


Annette inicia promissor e divertido, mas subversivo e inconformista 

O humorista e apresentador de stand up Henry McHenry (Driver) é um artista glorioso que consegue arrancar gargalhadas orgulhosas de seu público. “Estamos prontos para começar”, e ele começa grande, gigante, leva sua plateia ao delírio e ousa numa performance para maiores, mas sem obscenidade (tirando o fato de ficar quase nu). Ann Defrasnoux (Cotillard) é uma enigmática sofredora cantora de ópera. Com sua carreira também vivendo o auge, ela se entrega de corpo e alma à sua atuação por trás e no abrir as cortinas, levando sua plateia a se emocionar e ovaciona-la diante de sua apresentação romântica e trágica. 

Ann e Henry também se entregam de corpo e alma um ao outro. O roteiro não nos revela como que os dois se encontram e como se inicia essa história curiosa, apenas se contenta em nos mostrar como que um casal adulto leva a ferro e fogo um romance estilo juvenil e inocente faz com que eles subam aos céus do prazer e se entregam à paixão da vida real de cada um. Mesmo com um início divertido, o amor dos dois não nos transmite alegria e o musical começa a se esvaziar e nos inserir numa angústia relacional estranhamente oculta ao diálogo do casal.

Ann e Henry dialogam pouco, cantam muito, se entendem pouco, amam muito e intensamente. “Nós nos amamos muito”, é um mantra enfadonho, romantizado que tenta ocultar o que deveria alimentar e ancorar uma paixão, faze-la tornar-se amor verdadeiro, forte e resistente. Henry canta mal, mas o roteiro insiste em sua voz. O ator Adam Driver nos entrega uma atuação digna de oscar e consegue transmitir a dor de um homem que tem medo de perder sua razão de viver. Mas ele a perde porque quis perder. 


O estilo noir e o ambiente de conflitos 

Do que se trata Annette? Annette é o nome que a filha do casal concebe. O filme ganha seu nome por contar a história de uma menininha fruto de um amor impulsivo, apaixonante, estranhamente conflitivo, mas humanamente apaixonado. A coisa fica mais confusa ainda quando Carax resolve representar Annette através de um boneco animado de madeira fazendo-nos encarar um Pinóquio que não cresce o nariz quando mente, mas que canta quando a luz se acende. 

Nasce Annette e a presença da filha começa a tirar de trás das cortinas as dificuldades relacionais do casal. A própria cena de seu nascimento e a caricatura da criança a uma pintura grotesca de um palhaço não foi agradável de se assistir. A carreira do comediante desce ladeira abaixo e as plateias da ópera começam a se esvaziar. Num passeio em família de barco, Ann se perde dos braços de Henry e morre em meio ao oceano. Henry se vê desolado, pois sozinho ele já estava, sempre esteve, pois não soube ser um em dois. Ser um quando eram um casal. Ademais, Carax reacende o estilo noir do cinema francês que trata o surrealismo como um mecanismo de representar a angústia, o medo, a dor, a solidão, a tristeza e a morte de formas cinematográficas que explodem sentimentos e situações com jogo de luzes sofisticado e figurinos sensuais apelativos e uma estética subversiva que apela ao drama e ao ambiente pesado e frio. 

A virada de atos mais significativa é quando vemos Henry transformando sua comédia parodiada num show de humor negro e pesado. Vemos que tudo se trata das sombras de dramas pessoais, conjugais, íntimos, neuro-psicossociais, violência conjugal, exploração e ganância. Aquele musical que começou promissor e feliz, agora nos lança num abismo sem saída, frio e sem esperança. 


São tantos sentimentos que só uma criança os simplifica 

Por fim, Henry e a filha Annette (Devyn McDowell), unidos ao musicista “Condutor” (Simon Helberg), ganham o mundo com a voz doce de uma criança que deu ao pai a volta ao sucesso e aos holofotes. No entanto, tanto sentimento assim não pode ser suportado por uma relação abusiva, tóxica e sem diálogos. Annette nos entrega um final de volta à luz original do início do filme. Uma menininha que foi capaz de mostrar ao pai o verdadeiro sentimento que deve reger um homem e todo ser humano: o amor verdadeiro e dialogado. Ann e Henry não souberam viver isso. Ann pagou isso da pior forma possível e Henry pagará pro resto da vida. Annette tem um futuro traumático, mas promissor e possível de ser recuperado humanamente. 

Annette devolve a Leos Carax um sucesso grandioso. A sua história é monótona, mas grandiosa. É sombria, mas humana, porque homens e mulheres ainda hoje são capazes de se entregarem de corpo e alma a paixões avassaladoras mas pouco resolvidas. Acham que a paixão supera e preenche tudo, mas se esquecem que ela não sustenta a verdade, a honestidade, o trabalho profissional e nem mesmo o parceiro ou parceira. Nisso é só o diálogo que constrói e firma o amor verdadeiro. 

Carax contou com uma dupla infalível para misturar tanta dor e tantos outros sentimentos numa obra que uniu dilemas doentios da vida cotidiana e tragédias humanas que ainda perturbam o sono de muitos de nós. As vezes, a inocência e verdade de uma criança (McDowell) precisa ser vista por nós adultos com mais acolhimento e sinceridade. Nos olhos delas está a esperança que nos cabe afim de seguirmos por um futuro grandioso e mais iluminado. Por fim, reconhecemos que o enlace de Ann e Henry era algo desconecto, improvável, sem sentido um comediante e uma cantora de ópera, mas eles se amavam muito. Eram apaixonados. Mas faltou algo para que aquela família continuasse unida e feliz.




Por Dione Afonso  |  Jornalismo PUC Minas

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