Depois de adaptar a Antologia “A Maldição” em duas partes com A Maldição da Residência Hill (“The Haunting of Hill House”, 2018) e A Maldição da Mansão Bly (“The Haunting of Bly Manor”, 2020), o cineasta americano lança a sua terceira minissérie de terror, Missa da Meia Noite (“Midnight Mass”, 2021). Suas duas primeiras minisséries já haviam se consagrado com a inclusão de novos elementos no gênero do horror. Tanto em Hill como em Bly, o terror aliado ao psíquico e ao trauma familiar costurou uma perfeita narrativa ancorada em flashbacks eficazes para a inserção do medo, do susto e do horror.
Mike Flanagan não se contenta apenas em nos assustar, ele quer nos atemorizar, causar em nós um sentimento de culpa por algo que o medo não se atrele ao fictício ou ao sobrenatural, mas a algo mais do que natural, a algo real. Mantendo firme nesse propósito, Flanagan com muita sutileza e um jogo de câmeras que se aproxima de James Wan, consegue tocar em assuntos delicados como as relações LGBTQIA+, as comunidades negras, ao bullying, preconceito, discriminação por classes...
Seguindo essa proposta de Flanagan em nos inserir em situações concretas do cotidiano, seu novo trabalho Missa da Meia-Noite, critica veemente o fanatismo religioso. Até onde a sua fé te salva? Até onde a religião segue sem propósito libertador? A nova minissérie de Flanagan utiliza de medos reais para nos perturbar em nossas noites e dizer que, talvez, o horror esteja dentro de nós, e que esteja sendo vociferado por nossos lábios aos quatro cantos. (Atenção: a partir daqui há spoilers).
Mike Flanagan, 43, é casado com Kate Siegel, que na série faz a personagem Erin Greene. Sua esposa também já havia aparecido em A Maldição da Residência Hill. Com 93% de aprovação no Rotten Tomatoes, Missa da Meia-Noite explora o tema da religião. Ambientada na Ilha de Crockett, a trama segue o jovem Riley (Zach Gilford) que está voltando para ilha após cumprir quatro anos de prisão por ter se envolvido num acidente de carro. Riley dirigia bêbado e no acidente uma jovem morreu. Riley, todas as noites é atormentado com a cena da jovem morta em sua frente. Esse é um dos poucos pulos de susto que a série nos dá.
Junto dessa trama, seguimos a misteriosa narrativa do padre Paul (Hamish Linklater) que também chega à ilha. Padre Paul é enviado da Diocese do Continente (do outro lado do mar) para substituir o Monsenhor Pruitt que atendia à pequena comunidade St. Patrick, a única capela do lugar. Flanagan insere sem delongas o peso que a religião exerce neste local. Uma fé católica enraizada, bem ancorada nas tradições, hinos litúrgicos na “língua dos anjos”, jovens rapazes coroinhas e, a estranheza dos fieis que “buscam a fé” apenas na Quarta-Feira de Cinzas e na Semana Santa. A personagem “puritana” e muito chata, diga-se de passagem, de Samantha Sloan (a sacristã/secretária do padre, Bev Keane), que destila um discurso de fé moralista, preconceituoso e cruel transmitindo uma imagem de horror, desespero e sacrifícios tudo em honra do Senhor.
Tudo isso começa a perder valor quando eventos sobrenaturais começam a acontecer na ilha. Esses acontecimentos começam a fazer os fieis a se questionarem sobre o que acreditam e que fé é essa que professam. Nesse contexto, Mike Flanagan insere um discurso a respeito das religiões valendo-se de uma família de mulçumanos: o Xerife e seu filho. Xerife Hassan (Rahul Kohli) e o filho Ali Hassan (Rahul Abburi) sofrem discriminação por serem mulçumanos e sentem na pele como que a imposição de uma religião pode estar presente em pequenas ações do cotidiano, sobretudo quando numa instituição de ensino, as normas não dão conta de abordar as religiões presentes no lugar.
Padre Paul é muito caridoso, atencioso com seu povo, a ponto de não deixar de levar a Santa Missa até aos acamados, sem condições de ir caminhando até à Igreja. Paralelamente, vamos percebendo que sensações estranhas, longe da explicação da ciência vão acontecendo desde o momento em que uma cena de milagre é presenciada em sua missa, quando padre Paul faz uma menina numa cadeira de rodas se levantar e andar até ele afim de tomar a Santa Eucaristia de suas mãos. O que assistimos aqui é uma mistura de crenças e descrenças, culpa e perdão, ciência e fé. Quando os feitos, pra lá de suspeitos, do padre, surgem, todo o tecido social da pequena ilha começa a se descosturar e começamos, desesperadamente a tentar entender onde que tudo isso vai se desaguar.
Os pais de Riley começam a sentir melhoras físicas como por exemplo não precisar mais dos óculos para a costura e não sentir mais dor nas costas. A própria mulher acamada, Mildred Gunning (Alex Essoe) sai de sua cama e volta a andar. Sua filha Dra. Sarah (Annabeth Gish) não consegue explicar cientificamente o que está acontecendo e milagre não é uma solução para o seu senso religioso.
O terror, o horror, o medo é mais um sentimento de culpa do que uma ação do maligno sobrenatural. Mesmo quando Mike Flanagan nos mostra o que acontece quando a miséria humana toca um Anjo do Senhor, não conseguimos omitir para sempre aquilo que mais nos assusta. O centro de toda a narrativa de Missa da Meia-Noite não está no medo, no susto, no terror. Tudo se centraliza no diálogo entre Riley e Erin sobre a vida e a morte e qual o sentido de morrer. O que acontece quando a gente morre? E o que vemos é uma das mais belas encenações e reflexões sobre do que se trata morrer.
Morrer significa selar toda a culpa. Significa que depois, todo o meu medo se transforma em perdão. Significa que o céu e a terra se tornam um. E não é o que eu acredito, não é o fato de ter fé ou não, é o amor. Não é sobre mim, é sobre todos nós!
Por Dione Afonso | PUC Minas