“Começou como uma HQ em 2003 e se tornou tudo que nós [Kirkman e os cocriadores Cory Walker e Ryan Ottleyos] amávamos sobre o gênero de heróis em uma única história. Hoje em dia o público tem um melhor entendimento do que são super heróis. Agora que temos essas grandes séries de TV e filmes, é uma boa oportunidade para focar no que é ótimo nos heróis e comentar as partes estranhas”.
[Robert Kirkman, CCXP, 2010].
Na última sexta-feira (30 de abril), a Amazon liberou o último episódio da primeira temporada de Invencible (Invencível). Com adaptação da gloriosa HQ de Robert Kirkman, Invencível é uma animação que ganhou muitos adeptos pelo mundo. Numa era que já tem muitas histórias de super-herói pra contar, algumas até clichê demais, Kirkman se aventura por um novo viés: falar de heroísmo com uma pegada mais The Boys e menos Superman.
Mas não para por aí. A trama central não é a ameaça do planeta e o surgimento de um grande herói que irá salva-lo. As vezes, parece que é exatamente o contrário disso. A trama ousa em colocar como trama central o grande dilema de um alienígena viver entre os homens da terra e que tem super força. Acaba se apaixonando por uma mulher humana e com ela tem um filho. Este, quando descobre seus poderes no auge da juventude, começa a ser treinado pelo pai e... as coisas não parecem seguir um plano tão simples assim.
Kirkman utiliza-se de velhos conceitos que servem para nos conectar com o que já conhecemos. Alguns estereótipos heroicos que já idolatramos nas HQs e nos cinemas e que, de certa forma, ainda funcionam. No entanto, ele consegue se afastar desses pré-conceitos e começa a mudar o paradigma de tudo o que antes a humanidade acreditava ser o certo. No final, o bonzinho não parece ser assim tão bom e o vilão... bom, digamos que o lobo mal não era tudo o que a gente pensava que fosse. (Cuidado: a partir daqui contém spoilers da primeira temporada)
Parece que a plataforma tem descoberto que cenas sanguinárias regadas a muita pancadaria e violência tem dado certo e rendido certo sucesso entre os nerds. Invencível conta a história de Mark Grayson, um jovem nos seus 17 anos, filho do alienígena Omni-Man, dotado de superpoderes. Aos 17 anos os poderes de Mark se manifestam e o garoto começa a ter dificuldades em equilibrar sua vida social, escolar e como a de qualquer ser humano normal com a nova vida que ganha por conta de seus poderes.
É interessante que no universo de Invencível, há todos os elementos que já conhecemos: uma organização secreta, como o pentágono, que investe em tecnologia e que comanda um time de super-heróis, os Guardiões da Terra; vilões que dominam os subúrbios da cidade; questões sociais e raciais que transformam em maldade as ações por trás de tráficos e contrabando de drogas, e a vida normal de qualquer jovem que levanta cedo e vai pra escola.
No entanto, para Kirkman, tudo isso é normal demais. Omni-Man, que vem sustentando uma ideologia de protetor da Terra, embora nunca se aliou ao time de heróis, revela, de fato, quem é. O planeta natal de Omni-Man não foi destruído. Na verdade, a raça alienígena à qual ele pertence sente-se superiora e super evoluída. E, assim como outros de sua raça, Omni-Man foi, há muitos anos, enviado à Terra com a missão de enfraquece-la e destruí-la. Já que humanos são fracos e inferiores, um lixo jogado na galáxia. É missão de Omni-Man, em nome de sua raça, acabar com esse entulho.
A série vai se desenvolvendo muito bem. Aliás, um dos grandes elogios é a sua fidelidade aos quadrinhos. Enfim, com a primeira parte concluída e definida, as coisas começam a se tornarem mais sombrias, mas sem perder as cores vivas dos personagens e dos uniformes muito bem desenhados. Mark, antes de se encontrar num embate violento e que chega a ser num certo ponto, difícil de assistir, ele se depara com a dificuldade de se orientar com sua dupla personalidade.
Suas amizades começam a não serem ouvidas e valorizadas. Uma paixão juvenil começa a questiona-lo sobre suas “fugidas” sem explicação convincente. O jovem de 17 anos começa a se perder e a querer negar sua condição alienígena e tentar viver como um ser humano comum. Sem contar que com a nova equipe de jovens super-heróis formada, Mark, por incrível que nos pareça, decide, assim como o pai, a não se unir à organização tecnológica (tipo a SHIELD dos Vingadores). No entanto, por motivos diferentes do pai: Omni-Man, não tinha a missão de proteger a Terra; Invencível não tinha a pretensão de ser um herói.
A presença da mãe, Deborah Grayson na série é um fator determinante para a história. Deborah começa a questionar o marido por suas atitudes mais severas e seu tratamento sempre raivoso e na defensiva. A esposa começa a desconfiar das ações do marido e começa a ir atrás de respostas. Mark tem muito mais a humanidade da mãe que o DNA não-humano do pai. E é esse fator que influencia em grande parte as decisões do jovem.
O melhor amigo de Mark Grayson (Willian) é gay e isso não é em nenhum momento romantizado. O início dessa história não deu mais protagonismo a ele, mas, mesmo assim, pra uma introdução, funcionou perfeitamente. É uma representatividade que está demorando bastante para ser introduzida no universo dos super-heróis. O dilema ético também com o avnaço tecnológico e até onde a moral pode ir é outra questão abordada. Talvez uma das mais difíceis de ser adaptada. Recriar tecido humano e fazer transporte de memória é algo em que ciência e ética não parecem ter a mesma direção.
A presença feminina também é muito bem representada na série. São jovens mulheres que não são deixadas de escanteio e que questionam e desafiam até mesmo os próprios pais como a Atom Eve e sai de casa em busca de um sentido para a vida. Isso é significativo, sobretudo, quando percebemos que o pai é um homem machista e que controla a esposa sob regras e ordens levando a mulher a viver por submissão.
O grande legado de O Invencível talvez seja que a sociedade é muito mais desumana do que acreditamos que ela possa ser. Os crimes, os roubos, os assaltos, pessoas boas se corrompendo por conta de um sistema que não contribui para a sua vida segura e honesta. Pessoas más que são assim porque as oportunidade os fizeram assim. Mulheres sendo desprezadas e tratadas como inferiores por homens que respondem apenas ao que o sistema machista os determina, e infelizmente os protege. Seres que se sentem superiores e mais inteligentes e, que, por conta de possuir tal poder, sentem-se no direito de destruir e matar quem não os acompanham. Será mesmo que essa vida só está presente nas HQs e nos longas de super-herói?
Por fim, o embate final e o gancho para a segunda temporada é assustador e ao mesmo tempo muito bem construído. Os heróis não são mais bem vistos pelos humanos. A presença de seres quase que imortais não é sinônimo de segurança. A luta inumana entre pai e filho deixou um rastro de destruição, muitos mortos e grande quantidade de sangue por todo o lado. E o filho não se esquiva e nem desiste, mesmo todo machucado e quase morto, de recuperar no pai o coração amoroso e humano que um dia o fez amá-lo.
A primeira temporada de O Invencível tem 8 episódios e está disponível na Amazon Prime Video.
“Só fui ler Invincible quando comecei a trabalhar com Kirkman em The Walking Dead, fui atrás de todas as obras dele. O que mais amei é que, se você gosta de HQs e heróis, ele escreveu a versão que secretamente todos nós queríamos ler. Não fazia ideia de que Kirkman transformaria isso numa série animada, ele que me ligou para contar há uns anos. Ele é o melhor, então eu geralmente não nego nada para ele”
(Steven Yeun, sobre o trabalho com Kirkman em entrevista)
Por Dione Afonso
Jornalismo PUC-Minas