21 Jan
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O ateísmo, desde sua origem grega datada do século VI a.C., mostra-se como uma ideologia filosófica bastante peculiar: a não crença em doutrinas religiosas e em deuses. Mas, foi por volta do século XVIII que surgiram o que podemos chamar de primeiros adeptos à ideia. Depois, a Era Moderna e a Contemporaneidade, encharcada com os experimentos científicos e a forte presença do pensamento racional fez com que o ateísmo ganhasse ainda mais força. De acordo com o escritor francês George Minois, acreditar numa religião significa que o homem simplesmente está tentando encontrar uma justificativa para a sua existência. Alguns consideram o ateísmo como descrença, contudo, estudos mais aprofundados colocam a teoria como uma prerrogativa de negação a qualquer coisa que se alie a uma espiritualidade que não condiz com a razão ou a ciência. 

Quando nos deparamos com o roteiro e a direção da dupla Scott Beck e Bryan Woods em Herege, ficamos impressionados com o que pode ser feito com o tema do estudo das religiões e a teoria da descrença. Dos estúdios da A24, o filme é muito mais que uma obra do gênero terror, ele é uma aula sobre religiões que até hoje não vimos ninguém com a coragem suficiente de aplica-la dentro de uma sala de aula. O Sr. Reed (Hugh Grant), recebe a visita de duas jovens missionárias da visitação da Igreja dos Mórmons Irmã Paxton (Chloe East) e Irmã Barnes (Sophie Thatcher). Encurraladas por Reed quando questionadas sobre suas crenças e nas que sua igreja defendia, as jovens missionárias se veem numa armadilha ardilosa de alguém que elevou o ateísmo num grau jamais visto. 


O poder das religiões 

Nem mesmo a Igreja Católica, com mais de 2 mil anos de Tradição ficou isenta dos questionamentos de Reed. A religião Mórmon nasceu em 1830, com a publicação do Livro de Mórmon e a fundação da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias por Joseph Smith. Com uma visão de um economista muito inteligente, Reed expõe para as jovens missionárias como que a história – da humanidade – e não só das religiões tem o poder de dar voz e fama a qualquer um. Não é porque uma determinada pessoa foi a criadora de algo que ela será creditada no futuro. Pode surgir alguém com uma visão bem mais evoluída, roubar sua ideia, patentear e vende-la para o restante do mundo, ganhando assim, a fama e o poder sobre algo que outro inventou. 

Reed, através de uma atuação magistral de Grant coloca as religiões numa linha histórica desafiadora e questionável, mas, mesmo assim, consegue, através de seu poder dissuasivo e sua retórica filosófica, evocar seu ponto de vista. As irmãs missionárias apelam para os grandes eventos da humanidade – catastróficos, aliás – que Reed deixou passar em sua rápida exposição sobre as religiões, o que faz com que a retórica de Reed perca um pouco de força. O fato é que ao afirmar que as mais de 60 mil religiões que há no mundo não trazem nada de novo, e não passam de plagiadoras de algo que veio antes delas. Até mesmo as Cinco Grandes – Cristianismo, Islamismo, Hinduísmo e o Budismo – não representam nenhuma ideia original, mesmo representando 77% da população mundial. 

O roteiro é afiadíssimo, perspicaz, inteligente, assustador e criativo. Não se trata de apresentar um plot twist, mas de certa forma, há uma reviravolta que nos desconcerta, tira-nos do nosso habitual e nos faz pensar um pouco nas crenças que defendemos. Reed e as duas missionárias se encontram com um diálogo bastante profundo e muito bem ancorado, cada um em suas teorias. As atuações de East e Thatcher, mesmo obedecendo a uma ideia que o clima do filme pede, poderiam ser mais instigantes e presentes. São duas jovens muito boas no que fazem, contudo, sentimos que Grant rouba a cena o tempo todo. A fotografia de Chung-hoon é outro acerto da obra. Assistir a iluminação e a falta dela na casa assustadora de Reed é uma experiência de terror e medo que nos prende. Vale lembrar que estamos diante de um filme de terror que, mesmo se reconhecendo como tal, ele foge do convencional e nos prende naquilo que é incomum, mas, instigante. 


Qual é a verdadeira religião? 

É o controle! Ou, pelo menos o que Reed defende, o que as religiões fazem com todos nós é controlar o que sentimos, o que desejamos, o que queremos e o que, de fato importa a nós. É o poder de controlar. É o poder de nos fazer acreditar. É o poder de nos fazer importar por algo e/ou por alguma situação. E é na virada de ato que a narrativa sobre o controle domina a situação. O diálogo, por exemplo, que abre o filme, as duas jovens missionárias sentadas no banco da praça conversando sobre coisas que para a igreja são vistas como banais e pecaminosas, falar sobre desejo, pornografia, atos sexuais, libido e prazer, nos entrega algo que só descobrimos a relevância no último ato. Irmã Barnes usava um anticoncepcional, o que para a igreja era proibido. Irmã Paxton era a puritana, a jovem inocente e sem maldades em seus pensamentos. 

Herege é mais um filme “fora da caixa”. Estamos diante de uma obra que questiona a fé, a moralidade e os jogos de poder, mas sem deixar respostas fáceis. Uma boa experiência. Roteiro perfeito e diálogos apavorantes e bem construídos. Atuações dignas de aplausos e uma história que vai nos prender até o final. Mesmo com algumas derrapadas entre o segundo e o último ato que quase nos tiram do contexto, o filme funciona com o que almeja nos contar. Vemos um pouco aquele clima de “jovens religiosas burrinhas em apuros”, ao mesmo tempo que vemos aquele porão que é clichê na maioria dos filmes de terror. O desfecho nos deixa meio decepcionados, mas a experiência ainda vale a pena.





Por Dione Afonso   |    Jornalista

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