02 May
02May

Toda vez que nos deparamos com produções brasileiras, histórias reais ou te teor ficcional que são de boa qualidade, bom roteiro, e excelentes atuações, é importante nos perguntar qual que é o tabu que existe para que tais produções produzidas no Brasil não são mencionadas no Emmy Awards. Considerado o Oscar da TV, a cerimônia de premiação que existe desde 1949, a Academia de Artes e Ciências Televisivas de Hollywood realiza em 2024 já a sua 76ª edição com data prevista para 15 de setembro. É importante mencionar, também, que entre tantas regras a mais injusta delas é que o Emmy prestigia apenas produções produzidas e lançadas dentro dos Estados Unidos, o que faz, por exemplo, a maioral La Casa de Papel e o sucesso Dark ficarem de fora das disputas por terem sido produzidas na Espanha e Alemanha, respectivamente. 

A Academia de Artes e Ciências Televisivas, portanto, criou, em 1963, quase 15 anos depois, o Prêmio Emmy Internacional, uma extensão que amplia o horizonte para outras produções televisivas. A política dessas premiações não é muito inclusiva. Por exemplo: nada impediria do Emmy Awards criar uma Categoria para prestigiar Séries Internacionais, ou, quem sabe, incluí-las entre as concorrentes com igualdade. Há um interesse mercadológico exclusivista e seletivo que não reconhece todas as línguas. Todas as culturas. Todos os povos e, principalmente, todos os sentimentos. Muitas produções do nosso país, são impressionantes e nos deixam deslumbrados com a qualidade de produção, de atuação, de edição... Da Ponte Pra Lá, direção e produção de Rodrigo Monte e Vicente Amorim chega como um soco no estômago. Encontramos ali, vidas marcadas pela crueldade social e por sonhos impedidos de se concretizar. 


O que tem “da ponte pra lá”? 

Quem narra a história é Ícaro (Victor Liam), um jovem negro, de periferia, pobre, trans e que conquista uma bolsa de estudos num dos melhores colégios de SP. “Da ponte pra lá”, Ícaro se depara com um universo de oportunidades, e, também, infelizmente com um mundo de oportunistas. “Da ponte pra lá”, Ícaro percebe o quanto as pessoas são rasas e frias em suas relações e desprezam tudo o que tem. A sagacidade desta obra não temeu a veracidade brasileira ao trazer a luta do trap (batalha de rimas), um estilo musical que ganha renome ao evocar o que há de mais escondido no ser humano. Sobretudo quando este ser humano é pobre, de favela, mas que também é o branco, patricinho, ou que é a migrante, que foge do padrasto abusador... ou ainda da compulsiva busca por grana e dinheiro pelo mercado pornográfico... 

Thais Falcão e Erick Andrade são os criadores desta história antológica que Monte assume a responsabilidade de transpô-la para as telinhas. O abismo social que a série nos apresenta é muito mais verdadeiro e real. A metáfora da ponte separa essas duas realidades que não se misturam, e quando alguém tenta se misturar, a “ordem” é comprometida. De um lado, uma São Paulo rica, um dos maiores polos financeiros da América Latina; do outro lado, a mesma cidade que carrega os estigmas de quem vive entre os países mais pobres do planeta. Ainda temos na personagem de Esther Tinman (Lola), a problemática da imigração e o trauma do abuso; com a Nayara (personagem de Amandyra), a dura realidade do tráfico e das empreitadas mal conduzidas neste mundo onde sobrevive quem cumpre sua palavra. 

Da Ponte Pra Lá acerta muito quando coloca a arte, a sinceridade e os sentimentos deste jovem elenco à flor da pele e como caminho de sobrevivência. O rapper (ou o trap, um subgênero da música) vem ganhando o público jovem. As letras das músicas de trap falam sobre temas relacionadas ao cotidiano e aos sentimentos. Esse é o grande motivo da batida e das rimas ganharem tão bem o público que se aglomera para assistir a criatividade e a capacidade que os participantes têm em criar rimas muito bem produzidas e no improviso. A produção foca na morte de Ícaro, quando sua melhor amiga Malu (Gabz) não aceita que ele tirou a própria vida e começa a investigar. 


“Ninguém quer ser coadjuvante da vida de ninguém” 

Malu descobre o quanto a vida do outro lado da ponte é fria, calculista, desonesta e suja. Os novos amigos de Ícaro viram nele uma oportunidade e não um humano. Rapha (Rafa Neves) que afirma ter amado Ícaro, não pensou duas vezes em abandoná-lo; Enzo (João Guilherme) pode não ter feito nada, mas também não se sentiu na obrigação em defende-lo das artimanhas do grupo; Lise (Nina Tomsic) roubou de Ícaro tudo o que ele tinha, seu talento e sua humanidade; GG (Manu Morelli) usa de seu distúrbio e seu amor pela fama e dinheiro para sugar de Ícaro e de sua imagem as oportunidades de likes e popularidade. 

Ícaro não se dá conta de tudo o que andam fazendo com ele e, Da Ponte Pra Lá com um toque magistral de cores e cenas muito bem feitas coloca ele no fundo do poço, mas antes, ele esfrega no telão da sociedade o quanto eles são vazios, frios, rasos e sem humanidade nenhuma. Não estamos apenas diante da morte do melhor amigo. Há outras camadas muito mais profundas que isso. É Gabz quem protagoniza a segunda narrativa ancorada na de Ícaro. E isso, só um bom roteirista é capaz de fazer. E o faz muito bem. São duas histórias em uma. Duas vidas numa. Duas dores, dois sentimentos, dois sonhos que se fundem num só. E isso é emocionante de ver na tela. 

Da Ponte Pra Lá, por enquanto tem funcionado como uma minissérie ou uma história antológica. Sem indícios de uma possível segunda temporada, o arco que se abre dá sua conclusão perfeitamente. Ter ou não um segundo ano vai depender de que história estaremos dispostos a contar para o público. É válido retomar aqui a discussão do início deste artigo: esta obra é digna de premiação, não só pelo fato de ser brasileira, mas porque ela é boa. É bem feita e, mesmo tratando de uma ficção, é a realidade mais pura do que ainda hoje vivemos na sociedade brasileira. Enquanto uns poucos tem muito e não sabem aproveitar o que têm; outros muitos vivem com tão pouco e com a sensibilidade de aproveitar cada pedacinho do pouco que têm. Por isso que os que muito têm, ainda sofrem com a falta e os que pouco têm, nunca lhes faltará o mais importante: o amor, a amizade.



Por Dione Afonso  |  Jornalista

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