10 Sep
10Sep

Com direção e roteiro da cineasta Kay Cannon, a nova versão de Cinderella da Amazon Prime apresenta uma nova identidade à personagem. Os musicais que embalam o longa ficam um pouco perdidos no decorrer da trama e, com isso, infelizmente, vemos muitos talentos de Camila Cabello (Cinderela), Nichola Galitzine (Príncipe Robert), Billy Potter (Fantabuloso Fado Madrinho) e de Minnie Driver (Rainha Beatrice) serem desperdiçados nas tentativas de concatenar música, coreografia e diálogo. 

É bastante significativo a apresentação de uma história que coloca a figura feminina no lugar em que ela escolheu ficar. Uma relação como a promessa de um casamento, por exemplo, nos tempos de hoje não são mais (ou não devem ser) pautados numa visão autoritária do parceiro. Relações constroem-se com a valorização dos desejos e sonhos de ambos. E Cinderela sabe nos dizer isso muito bem.

Por fim, ousar abandonar a história original e trazer uma versão musicalizada quebrando barreiras rotuladas há tempos pela sociedade pode não ter agradado muito o público. O mundo hoje vive uma grande tensão ideológica entre o “eu posso ser o que eu quiser” e o “você nasceu pra ser o que foi destinado a ser”. E, Cinderela afirma com toda confiança: “eu te amo Príncipe Robert, mas me casar com você não pode significar abandonar meu sonho e minha profissão. Eu posso ser o que eu quiser e se for pra escolher entre você e eu, escolho eu mesma!” (Atenção: há spoilers a partir daqui).


Cinderela consegue trazer originalidade 

Primeiro é preciso trazer a figura da mulher aqui representada: a nova personagem liberta a mulher das prisões sociais impostar pelos sistemas tradicionais de convivência. É importante a gente entender que ela não está mais presa nem no sótão e nem no palácio do rei. Está livre, como sempre deveria estar. E muitos têm dificuldade em aprovar essa versão porque não sabem viver de forma livre. Quando não estão presos a um relacionamento doentio, tóxico, escravo, machista, está preso pelo dinheiro, pela riqueza, poder econômico, emprego fracassado. 

Toda vida importa e todos nasceram pra serem livres. As pessoas têm sonhos, nós temos sonhos, e eles não são negociáveis. E quando negociamos eles, pagamos um preço muito caro no futuro. Deixar de realiza-los pra suprir uma necessidade social é ser conivente com sistemas que escravizam e torturam e não trata ninguém com igual humanidade. A quebra de estereótipos traz visibilidade a um grupo social que não é visto e nem acolhido. Quando uma obra desse cunho é “detonanda” pela crítica, no fundo é porque os que criticam também não olham para essas minorias que ganharam visibilidade pela arte apresentada. 

Tal visibilidade apresentada sustenta pontos de vista que, humanamente, o sistema que nos rege os vê como meros entulhos largados nas calçadas. A cantora, compositora e atriz cubada Camila Cabello também precisa se desconstruir para enxergar o lugar que a sociedade precisa que ela ocupe. Não é uma luta fácil. É uma luta de resistência. É resistir para sobreviver. Pôr a própria via em risco. Desafiar o sistema (nesse caso, desafiar o rei que representa o sistema). A Princesa Gwen (Tallulah Greive) é outra figura feminina forte e resistente. Jovem, mas inocente. Porém, com posição forte e que conquista (mesmo que de forma fraca pelo roteiro) um posto de visibilidade e de poder. Uma mulher poderosa. 


Nem toda mulher quer um príncipe, as vezes só quer ser vista 

Um olhar sobre a madrasta Vivian interpretada pela Idina Menzel. Que, acolhendo a originalidade histórica de alguém que perdeu o marido e submeteu Cinderela aos serviços da casa como empregada, Vivian sofre no silêncio (queríamos que ela sofresse no musical) por viver num ambiente social que julga sua família pela aparência. Claro que isso está no conto original, mas agora, respeitando o tempo atual, isso ganha nova tonalidade. Vivian e as filhas tentam se submeter ao regime imposto pelo sistema, mas sabem que o que querem mesmo é serem vistas e serem ouvidas. 

Não é um casamento com um príncipe encantado que é o maior sonho de toda mulher. É seu respeito, é a valorização de quem se é pelo o que se é. Foi uma cena curta, mas significativa o momento em que Cinderela acolhe e perdoa sua madrasta. Mostra que uma enxergou a outra, fez o que é o papel social de toda pessoa que busca reconhecimento, representatividade e humanidade. 

Billy Potter, o nosso Fantabuloso Fado Madrinho, além de romper totalmente com as estruturas sócio humanas e também com a inserção da diversidade, nos dá uma lição sobre o que é respeitar a si mesmo e sobre autovalorização. Não é porque a sociedade me quer assim, que eu vou ser assim. Eu quero ser diferente, então serei do jeito que eu quero ser. E é a sociedade que deverá acolher o meu jeito de viver. 

Portanto, a nova versão da Cinderella, mesmo tendo problemas sérios com o roteiro e com os musicais (visivelmente não sentimos ligação entre um e outro), traz diálogos ricos que nos ajudam a não nos tornarmos pessoas estereotipadas, cheias de rótulos e com resquícios de seletividade humana. No entanto, certas quebras de valores antigos poderia ter sido mais explorado pra que o filme num conjunto não ficasse com uma impressão de que foi feito apenas “para inglês ver”.




Por Dione Afonso  |  Jornalismo PUC Minas

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