12 Jan
12Jan

A situação na família não estava fácil. As contas estavam se acumulando, o emprego não estava garantido com o ponto crítico da pandemia. O auxílio emergencial não estava garantido. Mas, nem eu e nem minha esposa perdemos nossos empregos. A empresa nos manteve. Nossos três filhos estavam dentro de casa 24 horas por dia, o que iríamos fazer? Uma de nossas filhas, a mais velha, adolescente, estava precisando de atenção, de cuidados, mergulhada na internet, a depressão estava a consumindo. Ou eu, ou minha esposa teríamos que tomar uma atitude. Ela teria que largar o emprego e cuidar da nossa família. Mas, meu emprego não era o suficiente pra manter os gastos mensais. Então, minha esposa deu o grito: “o salário dela é maior que o meu. Eu deixei meu emprego e ela sustenta a casa. Assim, salvamos nossa família!”. 

[Belo Horizonte, novembro de 2020].   



Mais uma vez a Netflix sai na frente e lança um grande sucesso, Bridgerton. A série baseada em Os Bridgertons de Júlia Quinn publicados nos inícios de 2000 traz sensualidade, boa trama, personagens que nos fisgam e uma história que se desenrola no ponto certo. De Chris Van Dusen, mesmo criador de Grey’s Anatomy, o roteiro funciona como um romance e um suspense misturado a intrigas, e um cenário de época fantástico. Desde sua estreia, a série insiste em ocupar o primeiro lugar no TOP 10 da Netflix.

No entanto, além da série focar na família Bridgerton, ela traz muito mais que um romance e belos figurinos. O pano discursivo por trás de cada cena traz temas político-sociais relatados em diálogos que reforçam o papel social da mulher como inferior e que tem menos relevância que o homem. Discursos machistas que reforçam os estereótipos de segregação que separam as mulheres das discussões sociais e públicos. Esses discursos que estão impregnados nas relações começam a ganhar escopo quando as personagens femininas começam a ter que se virar para resolver situações em que elas, por serem mulheres, jamais se envolveriam.

Escândalos, famílias bem-sucedidas, personagens femininas que dão o tom na história conseguem nos prender. Mesmo tendo atores masculinos marcantes e atraentes, quem dá o ritmo do enredo são as mulheres. A família Bridgerton é constituída da matriarca, duas filhas e três filhos; a família Featherington com três filhas e uma prima negra; o Duque é amparado por uma mulher forte que o tornou quem é; e, todo o sucesso da primeria temporada gira em torno da enigmática figura Lady Whistledown, uma escritora (ou escritor) que dá a direção dos episódios, narra a história, mas sem interferir no desenvolvimento da história. 


A força e a presença da mulher no campo social 

Phoebe Dyvenor é a protagonista Daphne Bridgerton que, ao debutar, começa sua saga em busca de um casamento movido pelo amor mais que pelo status da família e títulos aristocráticos. Nessa jornada Regé-Jean Page é o Duque Simon Basset de Hatings, um homem misterioso que, com um passado cruel e mergulhado numa promessa de vingança, encontra-se com a doce joia Daphne, a pérola mais preciosa de todo o reino. Juntos, o casal forma um par cômico que, aos poucos vai se tornando íntimos e até apaixonados. Daphne acredita no amor e quer viver um casamento por amor. Quando seu irmão mais velho Anthony Bridgerton (Jonathan Bailey) arranja seu pretendente, Daphne entra em desespero.

Educada pela mãe a Lady Violet Bridgerton (Ruth Gemmell) e protegida pelo irmão, o Visconde,O que mais se valoriza em Daphne é seu crescimento enquanto mulher crítica e forte em presença. A série faz sua personagem dar um significativo santo: de jovem debutante, inocente e ingênua, para uma mulher forte, de atitude e comprometida socialmente. Daphne toma decisões e assume posturas que quebram as tradições sociais, em outras palavras, assume lugares onde uma mulher "não deveria estar". Daphne em certo ponto ergue sua voz e se impõe como mulher, como cidadã, como pessoa da sociedade. Bridgerton é ambientado numa novela de época, com figurinos de época, passeios a cavalo, belos cenários de jardim e mansões antigas magníficas. 

Lady Violet também revela num dos episódios a sua força e presença enquanto mulher. Ao encarar seu filho mais velho, o que assume, por posição social, a responsabilidade da família na ausência do pai, o Visconde Anthony Bridgerton se vê diante de uma mãe que assume, de certa forma, a sua posição quando cobra dele, de fato, sua postura enquanto homem responsável. Em Violet vemos mais um discurso que, mesmo sendo machista, é reforçado e aprovado pelas mulheres: Violet condena o filho por seu envolvimento com uma mulher que não respeita as normas sociais. Uma cantora de ópera que exibe seu corpo em suas apresentações, uma mulher que trabalha e que tem sua própria vida e que não se preza por ser alguém de respeito e submissa aos homens. O Visconde sustenta, então um relacionamento regado a forte paixão, orgia, mas também, regado à sujeição da pobre Siena Rosso (Sabrina Bartlett), que só quer ser aceita como ela é: mulher!

Daphne é sensual, jovem, e que aos poucos torna-se uma mulher forte, que abandona a inocência e até mesmo a infantilidade boba e a pureza para se tornar mulher de posição e de ideias. Sua irmã Eloise Bridgerton (Claudia Jessie) que é completamente o seu oposto, é uma menina jovem sonhadora e que a última coisa que deseja é um marido e filhos, prefere a morte. Eloise sonha com livros, em estudar e ganhar o mundo. Eloise é a quebra de paradigmas desse estereótipo feminino construído há séculos afim de aprisionar o dom de ser mulher. 


O favoritismo masculino que despreza a mulher 

“O fato de você ser homem e ser um Brindgerton torna tudo fácil e correto. Os ventos sopram a seu favor e nada dará errado”. Enquanto isso uma jovem mulher negra e grávida, sozinha, solteira e sem honra (pois cometeu o pecado de pegar barriga) é o que a sociedade mais despreza e até se enoja. Os homens nunca são culpados nesse contexto. É sempre a mulher que errou e que manchou o nome de alguma família. É o que vemos com Marina Thompson (Ruby Barker). Prima da família Featherington, a senhorita Thompson surge de forma enigmática na série com o intuito de enriquecer a aristocracia com sua presença. No entanto sua gravidez a coloca em condição desonrosa e até não-humana. Thompson é desprezada apesar de sua estonteante beleza quase roubar o lugar de cena de Daphne.

Como já mencionamos a personagem Siena Rosso (Sabrina Bartlett) que mantém um romance em segredo com o Visconde Bridgerton, vale ressaltar aqui mais uma vez a sua posição. Sua posição não é honrosa junto ao Visconde. A família Bridgerton deve enriquecer sua posição social e uma mulher que trabalha e é vista por todos por sua arte não é o que se espera de um lugar de respeito e honra, ou seja, a senhorita Rosso não tem os cabedais para se tornar uma Viscondessa. Seria um escândalo. Portanto, a mulher é vista com desprezo diante de um discurso machista que a coloca sempre em condições rebaixadas, pois é assim que se construiu socialmente. 

Voltemos à trama sonhadora de Eloise Bridgerton. Dessa vez, a colocamos ao lado de sua fiel amiga, a Penélope Featherington (Nicola Coughlan). A senhorita Featherington se assemelha à gata borralheira do conto de fadas. Enquanto suas irmãs, de aparência não muito agradável, enjoadas, faladeiras e cheias de ambição se esbanjam na jornada de busca por pretendentes dignos de títulos honrosos, Penélope é como se fosse a pobrezinha que limpa o chão e faxina a casa. Seu corpo não obedece aos padrões sociais e nenhum espartilho daria conta de fazer de sua cintura uma cintura de violão e, também, por ter uma mãe que não a valoriza pelo o que é. 

Enquanto Eloise divide com Penélope seus sonhos, a senhorita Featherington só queria ser vista por um homem que a desejasse como mulher. Penélope guardou um amor forte que alimentou pelo irmão de Eloise, Colin Bridgerton (Luke Newton), o mais novo dos irmãos. Ele a via como amiga e ela aceitou essa condição. Revoltada por nunca ter sido desejada, Penélope se tornou mais uma figura feminina pisoteada pelo discurso machista social. 


Lady Whistledown, o segredo das abelhas e o desfecho... 

A primeira temporada se encerra como uma história que funciona perfeitamente isolada e concluída. Se houver uma possível segunda temporada é significativo que algumas coisas não explicadas deem continuidade ao enredo. No entanto, nem tudo precisa de explicação. O enredo do Duque com a Duquesa, por exemplo, já se encerrou. Assim como o fato de ter sido revelado a identidade da escritora dos panfletos semanais e também a misteriosa abelha que aparecia nos episódios e a coincidência do vestido amarelo sempre vestir o corpo de Penélope. O público sabe quem ela é, mas os cidadãos, não!

Duque Simon Basset de Hastings teve seu arco muito bem desenvolvido e não conseguimos ver sua continuidade numa segunda temporada. A duquesa, sua esposa que o desafiou em todos os episódios conseguiu ama-lo e faze-lo amar. Abandonar-se de seu sombrio passado, ser diferente de tudo que lhe foi ensinado e inaugurar uma nova geração de duques pode ser uma forçação de barra. 

A amizade entre Eloise e Penélope poderá estar comprometida? Afinal, o sucesso do panfleto de Lady Whistledown poderá ganhar um lugar de maior destaque no futuro dessa história? Colin retornará? Penélope irá se declarar? O Visconde Anthony Bridgerton, de fato, irá se envolver por amor e estender o legado da família? A história do Duque Simon e da duquesa Daphne já foi encerrada?Portanto, o que é excludente, antissocial e preconceituoso, a série tenta corrigir com boas pitadas de sororidade com a centralidade de Daphne. Que atinge desde sua mãe até toda a temporada o lugar em que vive rodeada de bailes, músicas, pinturas e um bom sexo. 


“Mas é a verdade. Você sabe melhor do que ninguém que eu não desejava nada disso. Não queria casar nem ter uma família, muito menos me apaixonar. Mas acabei descobrindo, contra minha vontade, que é impossível não amar você” 

(QUINN, O Duque e Eu, 2000)



Por Dione Afonso Jornalismo PUC-Minas

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