20 Dec
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Em 1597 o poeta inglês Willian Shakespeare (1564-1616) lança uma história de amor atrelada, intimamente com o ódio e a tragédia que esse romance provocou. Romeu e Julieta, a trágica história de amor entre dois jovens que nunca puderam unir-se. Ambientada nos arredores da Itália, em Verona, onde gladiavam-se duas gangues rivais, a família Capuleto contra a Montéquio. Romeu era filho de um Montéquio que sempre se afastou dessas lutas. Nunca as via com bons olhos. Julieta era filha de um Capuleto, jovem prometida em casamento a seu primo Teobaldo Capuleto. Como a história se segue, você já sabe... 

Mais de 400 anos depois a história de Shakespeare ainda ganha o mundo, saindo do universo literário e ganhando inspiração para novas obras, tanto teatrais, quanto para as telas da TV e das salas do cinema. Assim acontece com Amor, Sublime Amor, um remake dirigido por Steven Spielberg, um dos fundadores da Nova Hollywood e roteirizado por Tony Kushner. São sessenta anos depois do clássico da dupla Robert Wise e Jerome Robbins em 1961, quando a obra levou 13 estatuetas do Oscar incluindo o de Melhor Filme e o de Melhor Direção. A obra não é uma adaptação do clássico da literatura inglesa, mas uma inspiração, uma releitura da tragédia shakespeariana ao atualizar uma história de amor que é assassinada pela crueldade humana atual. (Atenção! Há spoilers a partir daqui) 


A evolução temporal de Spielberg 

Não podemos cair na tentação em comparar a obra de 1961 e a de 2021. São sessenta anos que as separam e cada uma, interpreta, com perfeição, a condição temporal. Há uma evolução temporal no diálogo e nos discursos como, por exemplo, o lugar que a mulher ocupa socialmente. A Maria de Spielberg é uma “Julieta” questionadora, que participa da conversa e não é mais vista como um troféu sendo disputado entre os homens da gangue Jets e os Sharks. Os Jets são americanos da terceira geração, imigrantes da Europa e os Sharks são advindos de Puerto Rico, da primeira geração. Esse contexto configura-se na primeira atualização da obra da literatura, não se trata, só de uma disputa familiar, os laços se estendem, e agora, as lutas é por território. Briga de classes e preconceito cultural. 

A voz da mulher se sobressai na direção de Spielberg. O clima machista é quebrado pela voz feminina que também entra nos “ringues” coreografados. Os sonhos também são demolidos através da tomada inicial ao revelar destroços, entulhos de casas destruídas para dar lugar à evolução urbana com suntuosos arranha-céus. Esse cenário de destruição, revela o cenário desconstruído também dentro de cada pessoa. Os rapazes e moças que abrilhantam todo o filme com suas cores, coreografias e músicas cantaroladas são jovens que buscam um lugar tranquilo e um lar que possam chamar de seu. 

Nisso, o produto final que nos é entregue entrega uma discussão muito mais vulnerável ao tecido social. É muito mais público e de maior visibilidade. E menos intimista e mais realista. O amor é menos inocente, como a própria Maria de Rachel Zegler. Assim como o Tony de Ansel Ergot é mais maldoso também. Seu olhar de apaixonado se mistura ao do jovem sofrido que cumpriu pena atrás das grades. E o olhar de moça apaixonada de Maria se embrulha com o da jovem reprimida e violentada pelo irmão pelo simples fato dela não poder construir sua própria história. 


Um Romeu e Julieta escancarado no tecido social 

As releituras, interpretações e metalinguagens são recursos da linguagem que nos permitem abrir novas portas do conhecimento, da escrita e novos olhares diante de um texto com quase 430 anos que foi escrito. Se, nos permitem a metáfora, estamos diante de um multiverso da leitura que nos permite buscar em outros mundos, inspirações que contribuem na resposta de dilemas e situações dos novos mundos em que vivemos. 

Precisamos também destacar que as personagens coadjuvantes são mais fortes, mais presentes e cada vez mais ousadas e falantes. Maria e Tony, algumas vezes cederam espaços de cena para Anita (Ariana DeBose) e para Valentina (Rita Moreno). A interpretação delas redesenhou o caminho narrativo da tragédia shakespeariana revelando que um amor não resoluto implica a muitas outras vidas e situações. A cena final é de cortar o coração. Mas, mais que isso: revela que a violência existe onde o amor não pode ser vivido na entrega total de uma vida pura, simples, sem brigas. É o que corrói o tecido social que é mal costurado pelas linhas da violência. Linhas essas moldadas com a pobreza, falta de empatia entre culturas divergentes e pela falta de oportunidades. 

David Newman com seus arranjos musicais respeita o original de 1961 ao mesmo tempo que reelabora respeitando também o tempo presente. Numa era em que estamos diante de remakes vazios feitos apenas para angariar outros recursos mais rentáveis, Amor, Sublime Amor, continua mantendo sua grandeza e relevância artística e literária. A literatura da tragédia ganha tons mais realistas e menos surrealistas. Cada tom respeitando o seu tempo presente. E, se a violência e a morte são reais, por que o amor e os sonhos também não seriam?




Por Dione Afonso  |  PUC Minas

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