“Acredito que a vida é um jogo, uma piada cruel e que a vida é o que acontece quando se está vivo e o melhor é relaxar e aproveitar”.
[American Gods, Amazon Prime, emissora original: Starz].
O que aconteceu com American Gods? A história mitológica de Neil Graiman é excelente. O livro traz boas referências mitológicas e uma crítica perpiscaz aos vícios e ideologias religiosas de nosso tempo. Aquela antiga ideia de que “Novos Deuses nos fazem esquecer dos Antigos” é boa até num certo ponto. E parece-nos que a adaptação que esteve disponível pela Amazon Prime Video não agradou muito os adoradores.
A presença de Graiman no corpo da produção da adaptação deveria dar consistência e a segurança de que sua obra valorosa receberia uma boa trama por trás das câmeras. E o que recebemos foi um time de personagens muito bem trabalhados na responsabilidade de atores e atrizes incríveis, mas que foram mal aproveitados no desenrolar dos arcos de cada temporada.
Com três temporadas, a Starz decide por bem cancelar a conclusão da história (até então, no limiar da terceira temporada, os produtores contavam com uma quarta afim de encerrar o ciclo) antes mesmo que ela detonasse a obra literária. A peregrinação de Shadow Moon (Ricky Whittle) junto com o Sr. Wednesday (Ian McShane) ficou enfadonha e pouco interessante. Enquanto que os arcos ganhavam relevância com Laura Moon (Emily Browning) e com Salim (Omid Abtahi), trazer um caminhão de frases de efeitos e embriagar o público com uma série de plots não causou se quer, nenhum efeito, nem mesmo negativo.
É inegável que a crítica que American Gods faz à adoração e à luxúria e ambição atual é eficaz e excelente (de ser lida). Inclusive, leia a obra de Neil. Vemos no garoto da tecnologia, o Technological Boy (Bruce Langley), o quanto que essa grandiosidade ludibriante das conexões virtuais e digitais podem nos consumir. Consumir, literalmente. A metáfora para a série foi positiva no início, no entanto, a direção vai se perdendo, como que se os próprios novos deuses tomassem o controle da obra e, assim, tudo saísse do controle.
A premissa inicial, ou seja, a sinopse que nos foi vendida segurou apenas dois episódios da primeira temporada. Shadow e Wednesday se encontram para algo maior. Só que esse algo a mais foi sendo adiado e o público sentiu-se enganado pela trama e comprado por um produto que nunca chegou. Deuses, antigos ou novos, precisam ser mais interpretados e materializados na medida em que a sociedade vai sendo consumida por desejos individualizados matando a humanidade que existe tanto em nós, quanto nas relações.
Entretanto, quando tivemos o deslumbre do Leprechaun (Liam Doyle), um novo arco foi aberto. E, chegamos a dizer: agora vai! Foi, porém, parou também. Leprechaun nos deu de presente o retorno de Laura. Laura tornou-se a mais querida na série, aliás, mais ainda que o protagonista que era seu viúvo, Shadow. O arco dela, de uma morta-viva, ou morta trazida à vida era grandioso e merecia mais. Sua ida ao purgatório foi o auge de seu personagem e, assim como tudo nessa série, demorou pra acontecer. Apesar de ter ocorrido no momento certo, não foi o suficiente para segurar a história.
Wednesday e Shadow, por fim, perdem o ritmo, afastam-se e, com isso, comprometem a história. Seus envolvimentos nos entregaram cenas monótonas e de pouco aproveitamento. A química inicial entre os dois não se desenrolou e aquele “mimimi” foi cansativo. Wednesday conseguiu nos entregar cenas valorosas quando foi explicando ao público do que se trataria a guerra. No entanto, o fato dela nunca chegar fez de Shadow um descrente.
A não conclusão da história, apesar de dolorosa, não surtirá grandes baques contabilizando a lista de erros que a produção enfrentou. Vale lembrar também que a constante troca de pessoas no corpo da produção só fez piorar mais ainda as coisas.
Deuses americanos é uma boa obra, merece ser lida e contemplada. É um escopo grandioso que precisa de nossa atenção. O escrito de Neil Graiman não tem a pretensão de responder os erros que se sucedem no mundo hoje, mas, sem essa pretensão, ele nos esclarece o quanto que os humanos se entregam a adorações vazias e supérfluas como o consumismo, o dinheiro, o sexo, a luxúria, o paganismo, a tecnologia e o virtual.
O que Shadow buscou na terceira temporada de American Gods foi recuperar um pouco a sua humanidade. Já que ele se sentia perdido e vazio de amor, desde a morte de Laura Moon, sua esposa. Tentou se tornar o guerreiro, o “deus guerreiro” que salva o mundo que Wednesday tanto queria que ele se tornasse, mas, as coisas não se resolveriam tão fácil assim.
Disponível na plataforma de streaming da Amazon Prime, American Gods foi cancelada pela Starz em sua terceira temporada.
“Acho que prefiro ser homem do que deus. A gente não precisa de ninguém para acreditar na gente. A gente vai seguindo em frente de qualquer jeito. É o que fazemos”
(Neil Graiman, “Deuses Americanos”)
Por Dione Afonso Jornalismo PUC-Minas