16 Oct
16Oct

“Minha Mãe, Sua Mãe, Bruxas Vão Levar.

Minha Mãe, Sua Mãe, Bruxas Vão Matar. 

Bruxa Número 1, No Rio Afogada.

Bruxa Número 2, Vai Ser Enforcada.

Bruxa Número 3, Vamos Ver Queimar.

Bruxa Número 4, Uma Surra Vai Levar” 

[ANIMAIS FANTÁSTICOS E ONDE HABITAM, 2016, WARNER BROS]

 

 

 

Até onde nos é permitido explorar no gênero de terror? Até em que ponto o assombro, a possessão, são limitados a produções do horror e do terror? Você já se imaginou chorando assistindo um filme de terror? Será que é possível nos emocionar assistindo a uma trama de terror? Para Mike Flanagan, sim. E ele fez! Pois é isso que Flanagan faz com a gente. Hill e Bly nos envolvem nas histórias de traumas, paixões não resolvidas, assuntos inacabados, lutos não aceitos... É disso que se trata essa antologia das maldições: elas não são sobre diabos, demônios, poltergeist, espíritos, monstros, possessões... não. São sobre nós.

Não é a primeira vez que Mike Flanagan inova o gênero do terror no serviço de streaming da Netflix. A Maldição da Residência Hill estreou em 2018 com 10 episódios fechados e concluídos na mesma plataforma digital. Flanagan consegue prender-nos numa trama assustadora, mas ao mesmo tempo curiosa e aterrorizante. São 10 episódios que não possuem o intuito de nos assustar e nem de nos fazer gritar de medo, mas eles constroem uma história familiar marcada pelo drama da perda, da finitude humana e de relações familiares que carecem de confiança e boa estima.

Em A Maldição da Mansão Bly (The Haunting of Bly), lançado há uma semana (09) na Netflix, Flanagan não age diferente. Mesmo não tendo sido classificado como uma minissérie de terror, tanto a produção de Hill e essa agora de Bly, apresentam um enredo completo com início, meio e fim concluídos e totalmente resolvidos. Independentes e com tramas muito bem resolvidas e perguntas respondidas.


Texto com spoilers a partir daqui

Mais que um terror (eu nem me atreveria dizer que é isso), a antologia das maldições é um romance regado a boa trama, muito, mas muito suspense e um pouco de medo. O terror, na direção de Flanagan está mais no que eu vou sentir (no que os personagens vão sentir) do que nos sustos que os fantasmas irão nos dar. A moça do pescoço torto, a menininha da escada, o homem grandalhão de chapéu coco e bengala, a moça jovem vestida para o baile são fantasmas do gênero terror que acabam ficando em segundo plano, mesmo sendo assustadores.

Mike Flanagan não iria ser infeliz a ponto de repetir a mesma tática de Residência Hill. Mês trabalhando com muitos personagens, dessa vez, ele preferiu apresentar uma história mais linear sem muitas voltas ao passado. Agora, o presente era que assustava. O presente estava amaldiçoado. O presente era que precisava ser curado. A morte não havia ocorrido num passado no quarto vermelho (referência à Hill), agora, a morte estava batendo nas nossas portas a todo instante. Outra sacada de Flanagan também era com a casa: se em Hill a Maldição estava na casa em si, em Bly ele teria que inovar isso também. A mansão só era um palco, as maldições mesmo estavam no interior de cada personagem. E isso abriu espaço para explorar uma igreja, os jardins (aquele jardim de estátuas é o melhor cenário dos arredores da casa), um lago, a estrada...

Cada volta à Mansão Bly ou à Residência Hill é uma nova história. Mas não separada, histórias que se costuram. Essas idas e vindas temporais na vida de cada personagem prende-nos à trama de uma forma surpreendente. Talvez a grande sacada de Flanagan esteja aí. Nenhum outro terror conseguiu nos entregar uma produção desse nível. Flanagan inaugura, por assim dizer, um novo nível nas produções do terror. Flanagan nos entrega um terror pessoal, real, familiar, psicossocial, mas nada de terror demoníaco, aquele em que o demônio vai saltar sobre nós.


Residência Hill e Mansão Bly dão show de atuações

Para A Maldição da Mansão Bly, o diretor fez questão de trazer de volta às telas o corpo de elenco impecável de A Maldição da Residência Hill. Victoria Pedretti, a Neil de Hill ganha o merecido papel de protagonista em Bly como Dani, a babá/professora. Oliver Jackson-Cohen que interpretou o irmão gêmeo de Neil, Luke Crain, retorna no papel enigmático e misterioso Peter Quint. Henry Thomas, o pai Hugh Crain que nos arrancou lágrimas em Hill, torna-se um coadjuvante muito relevante em Bly como Henry Wingrave. A deslumbrante Kate Siegel, Theodora Crain, que arrancou nossos aplausos por seu papel LGBTQIA+ em Hill, retorna em Bly como a poderosa Viola Willoughby.  

Vale ressaltar a boa atuação desse elenco. A série reapresenta rostos que já conhecemos da Residência Hill que retornam com novos personagens e novas experiências e contexto. Destaques excelentes à Victoria Pedretti (a Neil da família Crain em Residência Hill), ela já havia nos conquistado no primeiro trabalho, e, agora, ela retorna ganhando uma personagem mais principal em que a trama gira em torno de seu drama do passado. Pedretti nos entrega um arco grandioso tanto como Neil, tanto como Dani em Mansão Bly, no qual ela interpreta uma babá/professora dos pequenos Miles Wingrave (Benjamin Evan Ainsworth) e Flora Wingrave (Amelie Bea Smith).

Outra perfeita atuação que retorna é a de Oliver Jackson-Cohen. Cohen interpretou o irmão gêmeo de Neil. Agora, ele é Peter Quint. Um homem misterioso e, aparentemente desaparecido. O desfecho da história nos entrega um show de surpresas e sustos quando nos revela que a maior parte do elenco estava morta. Sim! Mortos! Com certeza Flanagan ousou um pouco mais e se superou. As duas séries trabalham com uma estrutura de flashbacks que não nos cansam e nos ajudam a entender o ponto de vista de cada personagem, bem como as dificuldades relacionais de cada um.


A Maldição da Mansão Bly vai além

Se em Residência Hill a história gira ao redor de descrença do Steve Crain (Michiel Huisman), em Mansão Bly, o que faz a roda do terror girar é a fuga de Dani. Pedretti interpreta a protagonista de forma impecável e nos entrega uma personagem forte, completa, muito bem construída. Se Residência Hill fez-nos questionar porque Steve nunca acreditou no que via e nunca confiou na família, Mansão Bly nos questiona porque Dani fugia, que monstro era aquele que a atormentava dia após dia refletido nos espelhos.

E quando Flanagan inclui personalidades LGBTQIA+, ele inova mais uma vez: o medo, o assombro, a dor, está em todos nós. A não aceitação está no fato de não concordar com o mundo que vivemos e nem com a forma que vivemos nele: é preciso corrigir isso, curar nossas relações para que possamos viver bem e felizes.

O terror da Mansão Bly é um terror que nos liberta de um passado que nos atormenta pela culpa e pela dor. Culpa de não ter aceitado o que nos aconteceu ou de não assumir a história real. Dor de não assumir os próprios erros e de acreditar que o futuro vai ser diferente, uma nova página em branco. No entanto, se tem uma coisa que a Maldição da Mansão Bly nos ensina é que passado nenhum é uma porta fechada. Um dia ele volta, e volta fazendo estragos em nossa vida. “Sou eu, é você, somos nós”, o mantra que se materializa em Mansão Bly une passado e futuro e se faz presente uma única vez, como uma porta que se abre no momento em que tomamos uma decisão: ou curamos isso, ou viveremos à mercê de mortes e lutos pra sempre. Na Residência Hill também não foi diferente...



“Sonhos são como copos d'água: podem vazar. Mas os sonhos de uma criança são especiais, são como oceano: podem transbordar o mundo”

(A Maldição da Residência Hill, Mike Flanagan, 2018)


 

 

Por Dione Afonso

Jornalismo PUC-Minas

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