Um dos maiores sucessos do cineasta grego Yorgos Lanthimos talvez seja eu estranho, mas esplêndido O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017). Mesmo não sendo um trabalho que angariou premiações, serviu para colocar o cineasta nos holofotes da indústria. Depois do notável e grande sucesso de Pobres Criaturas (2023), Lanthimos nos surpreende com Tipos de Gentileza, longa que estava sendo filmado ainda durante a produção de Pobres Criaturas. Seu trabalho de 2023 rendeu grandes premiações, sobretudo com um grande destaque no Oscar, recebendo 11 indicações e vencendo em 4. A expectativa é que seu novo trabalho possa seguir na mesma direção, já emplacando uma disputa pela Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes que aconteceu em maio deste ano.
Entre 2017 e o seu novo trabalho de 2024, Lanthimos ainda lançou outros dois filmes que ganharam destaque: em 2018 ele chega com A Favorita, filme de época sobre a Realeza Britânica do século XVIII com Olivia Colman vivendo o papel da Rainha Anne e Rachel Weisz a Duquesa de Marlborough; sem contar com o papel crucial de Emma Stone vivendo a criada Abigail. O filme de 2023 é uma fantasia erótica que mistura comédia e ficção-científica numa releitura do monstro Frankenstein com a tentativa de uma possível versão contemporaneizada e feminina com Stone no papel principal. Agora, o que encontramos neste novo trabalho de Lanthimos foge um pouco da magnitude carismática do antecessor e entrega um resultado que pode não ter sido muito satisfatório. Tipos de Gentileza é sobre tudo, menos sobre gentileza. Na verdade, seu novo filme trata de um tema grandioso demais, mas com ferramentas simplórias demais. É válido ressaltar que Lanthimos mantém firme sua parceria com a atriz Stone, protagonizando seus três recentes trabalhos.
Em Tipos de Gentileza nos deparamos com não uma, mas três histórias. Trata-se de 3 filmes em um com quase uma hora de duração cada. Todas as histórias são protagonizadas pelo quinteto: a vencedora do Oscar Emma Stone; Willem Dafoe; Jesse Plemons; Hong Chan e Margaret Qualley. Em cada história eles protagonizam personagens diferentes que nada têm de semelhante e, aparentemente nenhuma ligação. No primeiro Robert (Plemons) é casado com Sarah (Chan) e trabalha no escritório de Raymond (Dafoe). Robert é um homem que não tem liberdade nem na profissão e nem na vida pessoal. Seu trabalho é viver de acordo com as regras que Raymond determina. No segundo, Daniel (Plemons) é policial e casado com Liz (Stone) que é bióloga e está desaparecida. George (Dafoe), pai de Liz, culpa Daniel e Martha (Qualley), melhor amiga tenta apoiar Daniel. Por fim, na terceira história, deparamo-nos com a dupla Emily e Andrew (Stone e Plemons) numa espécie de culto ou seita de purificação da humanidade. Comandada por Omi e Aka (Dafoe e Chan), um grupo de pessoas os vê como gurus da nova humanidade pura e “liberta”.
As três histórias são entrelaçadas, mesmo que os personagens de cada uma nada têm de conexão entre si. Vemos o imprevisível da vida, e o improviso da direção. Vemos o trivial das relações e o desespero do roteiro. Vemos a pressão das profissões e a correria dos artistas na vida real. Na primeira história, por exemplo, o personagem de Plemons é um homem que se perdeu na vida depois de perceber que não tinha controle sobre si mesmo e nem sobre seus gostos. Mas, também, seu personagem se enlouquece quando percebe que não sabe viver sem este controle manipulador. Ou seja, o que era pra ser uma relação profissional entre patrão e empregado, torna-se uma devoção doentia e subjulgada. Essa relação de autonomia – ou a falta dela – e de descontrole da própria vida se repete na segunda história e ganha um tom mais elevado e satírico na terceira.
Fica claro que há uma crítica à fé e às crenças espiritualistas da sociedade. Isto é algo que não fica claro na primeira história, mas o conceito de devoção e admiração doentia por alguém já aparece. Fica confuso na segunda história, mas ganha força, conceito e definição na terceira. Uma marca de Lanthimos é que o cineasta não quer te dar a solução. Ele apresenta os perigos, os medos, os anseios e as doenças da humanidade, mas deixa que o público possa refletir e chegar em suas conclusões. Explorar como que essas relações de poder e servidão estão cada vez mais presentes em os seres humanos mostra que os limites de nossa razão precisam ser melhor exercitados para que não caiamos tão facilmente nas armadilhas.
É decepcionante quando não encontramos no filme as referências do título. Neste caso, o decepcionante atrai e é uma jogada de mestre. Em Tipos de Gentileza, nada e nem ninguém é gentil. Não são gentis nem consigo e nem muito menos com os outros. É repugnante, na terceira história, o episódio de Emily com o pai de sua filha. Uma cena que dá nojo. Na mesma proporção é bizarro a cena do trio na segunda história que se reúne para assistir a uma gravação que fizeram no passado de um sexo grupal. Lanthimos, ao mesmo tempo que nos faz pôr a mão na consciência ele nos faz rir da nossa própria ridicularidade e nos faz nos chamar de idiotas. Num breve momento, parece-nos – e essa é uma sensação pessoal – que o diretor tenta nos mostrar que os vínculos afetivos entre as pessoas estão ficando cada vez mais escassos.
Portanto, Tipos de Gentileza é, sim, sobre gentileza. É sobre ser ou não gentil. É sobre uma gentileza que nos subjuga ao descrédito, ao sacrifício, ao se machucar a qualquer custo para agradar a outrem. Isso é gentileza, mas uma gentileza que te anula, diminui-te e até te mata. Não estamos diante de um filme de três partes ou de três capítulos; o trabalho do cineasta nos apresenta três histórias, três filmes em um. Inclusive, você pode até escolher aquela história que mais se identificou. Não é um erro nos sentirmos representados em uma das três situações que foram apresentadas. Aliás, tudo o que vimos ali é um retrato da vida atual com suas imperfeições, suas gentilezas e suas ambiguidades. A todo instante precisamos lidar com pessoas que tentam nos manipular e ditar as regras da nossa vida pessoal. E aí, cabe a nós decidirmos que tipo de gentileza iremos empregar nestes contextos.
Por Dione Afonso | Jornalista