Raramente o tema da eutanásia é abordado com leveza pelas obras de arte. Desde a literatura até a filmografia, o assunto nunca encontra um berço em que possa repousar com tranquilidade sem levantar uma faísca se quer de assombro. Lidar com a morte é sempre um fardo – pelo menos é o que as literaturas nos revelam – e falar sobre ela nunca ameniza a dor de enfrenta-la um dia. A 82ª Edição do Globo de Ouro 2024 que premia os melhores da TV e do Cinema levantou uma pauta que nos fez refletir. Entre as atrizes indicadas à Categoria de Melhor Atriz em Filme deparamo-nos com uma Fernanda Torres, que deu vida a Eunice de Paiva, uma mulher que não deixou o peso da idade interferir em seu futuro e sua busca por justiça; Angelina Jolie que interpretou Maria Callas em sua última semana de vida. Callas teve dificuldades de aceitar sua vida longe dos palcos por conta de uma doença; Nicole Kidman, uma CEO de sucesso, mulher madura que se depara com uma sexualidade que não a satisfaz mais... A comédia gore A Substância em que a atriz Demi Moore também enfrenta o etarismo no mercado de trabalho.
Agora, é a vez de Tilda Swinton protagonizar ao lado da amiga Julianne Moore a vida de uma jornalista correspondente de guerra do The New York Times tendo que lidar comum câncer cervical. Martha (Swinton) está no leito hospitalar tentando encontrar esperanças num tratamento inovador em que ela se aceitou ser cobaia do procedimento. Sua melhor amiga, a escritora renomada Ingrid (Moore), ao descobrir sobre a condição de Martha decide visita-la e oferecer seu apoio como amiga para que essa luta possa ser mais leve possível. As atrizes dão um show de atuação e conseguem evidenciar que a luta contra uma doença que já tem o sobrenome de vencida, não é uma guerra comum e que todo ser humano é capaz de travar. A própria Martha se vê cansada e até mesmo se sente uma idiota quando percebe que alimentou esperanças em algo que não era possível.
Quando Martha decide se entregar, ela opta por um caminho – ilegal nos EUA – que parece obscuro humanamente falando. A eutanásia acolhida pela própria paciente é uma maneira de abreviar o sofrimento, uma vez que a esperança em viver/sobreviver já não habita mais entre nós. Não se trata de defender o ato mortal. O cineasta Pedro Almodóvar não pretende carimbar tal ação como factual e necessário em nossas vidas corriqueiras. O simples fato de levantar esta pauta e acordá-lo entre duas amigas de longa data revela que não importa o quanto é colorido nossas vidas, ou o último mês que temos, isso sempre será um assunto doloroso. Quando Martha e Ingrid saem da cidade e alugam uma casinha no alto da montanha, com boa vista, longe dos barulhos do centro, longe das livrarias e sessões de autógrafos, longe das câmeras e dos embates de guerra... é como se o mundo parasse para que aquela vida aproveitasse o que ainda lhe resta.
Almodóvar é famoso por suas películas sempre com muitas cores em abundância. Não de uma forma exagerada e desorganizada, mas de uma forma incomum. O verde, por exemplo, sempre presente em grandes tonalidades em seus filmes; o muito vermelho; o amarelo forte; o azul berrante... marcas que ele insiste em deixar saturado em suas histórias. Martha escolhe vestir em seu último dia um terno colorido de um amarelo forte e vibrante, um batom vermelho vívido em contraponto com uma vida que parece não ter mais cor e nem motivos para se colorir. Tal contraste entre o externo e o interno são evidenciados por uma narrativa que se aprofunda na amizade dessas duas mulheres que souberam aproveitar muito bem a vida. Foram pessoas de sucesso, trabalharam com o que amam e viveram grandes aventuras.
O destaque de Moore é sempre o da delicadeza. Todos os anos a gente é agraciado com esta sutileza de atuação que ela nos proporciona. Desta vez ela encarna Ingrid. Uma mulher que tem presença, mas que é silenciosa. Não esconde o medo que possui da morte, mas não se esquiva quando este é o assunto. Não mede esforços para estar na presença da amiga, mesmo que esta lhe peça pra ficar no quarto ao lado. Esta metáfora funciona como um contrato de amizade verdadeira: não importa o quão cruel seja a sua vida ou a decisão que precisa tomar. Tudo depende de quem está com você no quarto ao lado. E você sabe que estará ali quando a morte chegar.
Almodóvar faz da história não um roteiro melancólico, sofrido, doído, com o derrotismo que a história insiste em preencher. O que vemos é uma vida que é celebrada, com recordações e mil histórias que poderão ser contadas. O filme termina com aquele gostinho de que a história poderia continuar. Ainda há muito o que se contar, sobretudo depois da morte. Os diários de Martha dos tempos de jornalista em campos de guerra são um material rico para o futuro desta história. Eles poderão conter a narrativa de uma mulher forte que usou dos meios que tinha para comunicar a paz em meio a situações de morte. É profundo quando Martha diz à amiga que desta vez ela entrou numa guerra que não vai conseguir sair e nem muito menos vencê-la. “Perdi esta guerra para o câncer”, disse ela.
John Turturro e Sarah Demeestère auxiliam na dinâmica da história, para que ela continue seguindo o fluxo. A chegada de Turturro como o amigo/ficante Damian ajudou a história a garantir certa leveza e fez com que a vida fora da bolha das duas amigas seguisse o rumo. O ato final é essencial para que Ingrid e Damian consigam levar a vida. A entrada de Michelle, a filha de Martha também gera certo desconforto necessário, mas, que rapidamente encontra seu lugar como aquela peça de quebra-cabeça que só estava mal encaixada. O Quarto Ao Lado é emocionante. Um filme simples, mas que fala da morte celebrando a vida. Com mulheres fortes, potentes, porém imperfeitas, mas, imperfeitas de um jeito honesto e verdadeiro.
Por Dione Afonso | Jornalista