Vinte e cinco anos nos separa as duas obras. Adaptado na obra de Ariano Suassuna, o filme que Guel Arraes dirigiu em 2000 foi um marco histórico na história do audiovisual brasileiro. Assistir a uma Fernanda Montenegro representando uma Nossa Senhora serena e pacificadora nos emocionou a ponto de fazer da obra referência para as gerações futuras. Os protagonistas Selton Mello e Matheus Nachtergaele dando vida aos amigos trapaceiros Chicó e João Grilo respectivamente, deram alma a uma obra que possui um coração que bate pela literatura e pela arte. O Auto da Compadecida é teatro no ato mais puro de existir e o que ali se encena ultrapassa os limites da compreensão humana e só nos resta sentir e amar tudo o que ali é declamado. Suassuna, que faleceu em 2014, lançou a peça de teatro em 1955, dividida em três atos, O Auto da Compadecida só possuía um objetivo: celebrar a amizade, mesmo que isso custe muito e, custe tudo o que temos.
A peça de Suassuna é referência literária, sobretudo no Nordeste brasileiro por conta de seus regionalismos e a famosa literatura de Cordel. Algo que se repete com muito respeito à cultura no novo filme de 2025: João Grilo e Chicó se reencontram após os eventos do passado e desafiam até mesmo a fé popular em nome de uma aventura. Os amigos encrenqueiros se veem dentro de uma cilada ao arquitetar um plano para ludibriar os dois candidatos a prefeito: o Coronel [Humberto Martins] e o radialista Arlindo [Eduardo Sterblitch]. O filme conta também com o retorno da personagem Rosinha [Virgínia Cavendish], que se casou com João Grilo no primeiro filme.
Apesar de ser uma história com roteiro um pouco mais confuso que o primeiro, a narrativa consegue fluir ao se apoiar no carisma e boa atuação de Mello e Nachtergaele. Tudo se arrasta bastante para chegar ao ato final, mas, ao mesmo tempo, percebe-se que não somos enganados ao notar que tudo nos preparou para o grande ato. Até mesmo rola a piada interna quando João Grilo decide contar a história da “segunda vinda de Chicó” e Rosinha o alerta dizendo que as pessoas “vão sempre gostar mais da primeira versão”, mas, o roteiro inteligente logo responde na voz de Chicó que “o povo sempre vai buscar ouvir a segunda pela curiosidade”. E, de fato, a curiosidade nos moveu às salas de cinema para assistir ao segundo ato desta narrativa. Em dados momentos nos sentimos nostálgicos à algumas repetições, mas houve também algumas inovações que nos deixaram felizes.
As personagens coadjuvantes tiveram menos relevância desta vez. Houve uma tentativa de se construir um arco entre a filha do Coronel, Clarabela [Fabíula Nascimento] e o radialista. Contudo, a narrativa não ganhou força, mas Clarabela trouxe a personalidade da moça recatada que largou o sertão e foi estudar na cidade grande. Ao retornar, ela traz os traços ousados e caricaturatos que lá conheceu. O radialista Arlindo trouxe uma faceta um pouco mais grave, a comunicação alienante que faz com que o povo só tenha aquele tipo de informação através do único meio de comunicação: o rádio. Há muitos elementos novos no filme, mas poucos são explicados. E, infelizmente, nesta parte, sentimos que precisava de explicações.
O ato final é o grande acontecimento deste filme. Se, em 2000, Montenegro trouxe uma Nossa Senhora serena e calma, agora, quem a representou foi a atriz Taís Araújo que apresenta a Compadecida numa versão mais forte, presente, com voz e presença e disposta a lutar pelos que dela precisam. Araújo é a representação de todas numa só. Há uma homenagem à fé fervorosa e popular do povo e à Fernanda Montenegro, quando ela aparece numa das aquarelas. A versão do diabo e de Cristo também nos pegou de surpresa. Não encontramos outros atores trazendo essas representações. O bem e o mal moram dentro de nós mesmos e somos nós que precisamos escolher de que lado estamos. O filme é inteligente no ato final, surpreende-nos e consegue celebrar a amizade e homenagear o sucesso que ele carrega já há 25 anos.
Por Dione Afonso | Jornalista