19 Feb
19Feb

A corrida pelo Oscar é uma jornada um tanto quando desleal. Todos os anos há aqueles que ganham notoriedade, fama, visibilidade e sucesso de bilheteria. Por outro lado, também há aquelas histórias que mereciam um pouco mais da nossa atenção, mas que a mídia ou a divulgação deles não ganhou nosso respeito. Há muitos elementos que influenciam este quadro: a) o financiamento dessas obras para cobrir os gastos com a divulgação como cartazes, sessões abertas para o público, premières com os atores e atrizes; b) a história ganhar credibilidade e nosso respeito por sua relevância para a sociedade; c) a Academia dar o mesmo crédito para todos os filmes; d) os artistas envolvidos em suas atuações também comprarem a história que estão narrando... Portanto, neste ano, temos, de um lado, o sucesso de bilheteria de longas como Wicked e temos Nickel Boys, ambos indicados a Melhor Filme. 

É difícil assistirmos uma história filmada na mesma perspectiva que o cineasta RaMell Ross decidiu filmar. Estamos diante de uma história baseada em fatos reais de um lugar que existiu, de fato. Um reformatório para jovens, na Flórida que acolhe jovens garotos que infligiram a lei, ou foram encontrados em situações errôneas socialmente. A Dozier School for Boys (em tradução livre, Escola Dozier para Meninos) é conhecida pelos seus tratos abusivos contra jovens que ali são jogados. Toda a história é contada em primeira pessoa: ora a câmera se põe no lugar de Elwood (Ethan Herisse), um jovem negro levado para Nickel depois de ser pego inocentemente numa situação complicada; ora a câmera assume o lugar de Turner (Brandon Wilson), um amigo que Elwood fez dentro da “escola”. 


POV que se mistura e se entrelaça 

Não demora muito para que a narrativa de Ross consiga nos colocar “no lugar” de Elwood e de Turner. Um filme nesta perspectiva é desconfortável, mas na medida em que a história se desenrola, vamos nos identificando com a jornada dura e abusiva que um reformatório desenvolve. Nada educacional e muito menos humanitário. A mensagem de segregação, violência e opressão, trabalho forçado e condições desumanas é passada por Ross sem precisar deixar nítida as cenas que nos indicam tais elementos. Ross tem a sensibilidade de “manchar” a tela, ou desfocar as imagens, ou ainda, apresentar de forma retrô, com cenas antigas em preto e branco. A experiência que vivemos juntos desses jovens é sufocante, anestesiante e claustrofóbica. A dor ultrapassa os limites físicos e atinge nossa consciência. 

No reformatório é nítida a situação entre os jovens brancos, que ganham mais atenção, mais oportunidades e regalias do que os jovens negros, separados e esquecidos. O silêncio grita em nós. O som é asfixiante. As imagens desfocadas gemem de dor. A edição com cortes brutos, constrói uma história unificada, ancorada na vida de jovens que tinham m futuro pleno pela frente, mas a sociedade decidiu aprisiona-los num sistema educacional de fachada e que pouco instrui. Quando as imagens de arquivo invadem a tela quadrada desta narrativa, recebemos um soco no estômago quando notamos que tudo aquilo, se formado cena após cena, temos uma história de dor e repressão. 

Estamos em 1962. Os EUA se encontram no auge da guerra que luta pelos direitos civis. O filme traça paralelos entre o que acontece no reformatório com os eventos reais do lado de fora. A visão de Turner é um olhar sem esperança em relação ao futuro, à sua vida e à oportunidade de superar o que ali passa; enquanto que Elwood tem um olhar mais otimista, é contra a violência e tem em Martin Luther King uma âncora de fé e de esperança. As muitas cenas que dão foco ao chão ou aos pés dos personagens revelam a submissão violenta que os negros assumem diante de outros membros da sociedade: os brancos ou os que têm poder e nome diante de uma situação conflituosa. É chocante quando a avó de Elwood tenta ver o filho e se encontra com um jovem que não consegue conversar com ela sem olhar em seus olhos. A câmera foca seus lindos sapatos vermelhos. Talvez a única cor viva em todo o filme. 


Melhor Roteiro Adaptado e Melhor Filme

Nickel Boys concorre em duas Categorias no Oscar. Enquanto RaMell Ross está na corrida da Direção, ele, ao lado de Joslyn Barnes e do escritor Colson Whitehead, concorre na Categoria de Melhor Roteiro Adaptado. Baseado no romance de Whitehead, ganhador do Prêmio Pulitzer, Nickel Boys narra esta poderosa amizade entre dois jovens afro-americanos que passam juntos pelas angustiantes provações deste reformatório na Flórida. O quintal desta escola vira um cemitério de indigentes, muitos jovens não conseguem sobreviver às torturas que o reformatório subjuga aqueles que “ofendem” o sistema de leis e regras do lugar. 

O Oscar e nós, enquanto público de bilheteria, precisamos dar mais atenção à histórias necessárias e urgentes para a nossa sociedade atual. Nickel Boys não é de um passado tão longínquo: a década de 1960 ainda fala alto dentro de nós e a dor que ela causou na humanidade é a nossa dor. É o nosso sangue. São nossos próximos. Há um futuro de nosso protagonista que é apresentado entre cortes e recortes, indicando o futuro possível de nosso personagem. Vale a pena darmos uma chance a este filme e perceber que o Oscar tenta dar oportunidade a toda e qualquer tipo de narrativa, mas as campanhas de divulgação nem sempre são tão honestas e igualitárias assim. Enquanto isso, nós, o público, que tipo de filme escolhemos assistir quando entramos na fila da bilheteria?




Por Dione Afonso  |  Jornalista

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