10 Jan
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Yuri Marçal e Ailton Graça dão vida ao Mussum em sua juventude e na vida adulta. A direção de Sílvio Guindane alinhada ao roteiro de Paulo Cursino nos presenteia com um personagem que soube levar, de fato, a vida dura e sofrida da pobreza e do preconceito, com muita leveza e “graça”. O bom humor é aquele que edifica e que nos confere resistência, força humana e alegria. Não aquela alegria fajuta ou sem raiz, mas uma alegria ancorada em valores que sustentam a nossa existência e dão sentido verdadeiro para nossa vida. A trajetória de Antônio Carlos Bernardes Gomes, o Mussum sambista e, depois, o Mussum dos Trapalhões é recontada de forma respeitosa e sem muito glamour. É divertido assistir o “por trás das câmeras”, mesmo que, forjado sem muito requinte, mas conferiu credibilidade e um pouco do factual. 

Primeiro assistimos ao jovem Carlinhos se apaixonar pelo samba e pela música, pelos instrumentos musicais e pelas jovens moças. Depois, em saltos embalados por flashbacks, Carlinhos é descoberto pela TV e vai, aos poucos dividindo seus amores. Numa opinião bastante ousada, arriscamos afirmar que Carlinhos nunca se apaixonou pela TV, seu primeiro e eterno e grande amor sempre foi o samba. O que ele fez na televisão, como ele mesmo afirma, não passou de um hobby. Destaque especial também é conferido às atrizes Cacau Protásio e Neusa Borges, que deram vida a dona Malvina, a mãe do humorista. Na pele de Protásio, a matriarca recebeu postura de uma mulher sonhadora, mas intimista, enquanto que, dona Neusa fez de Malvina uma senhora bem vivida e rica de conselhos e orientações para o filho e para a vida. 


O lado humano do artista que ninguém vê 

Estamos diante de um dos melhores trabalhos de toda a carreira de Ailton Graça. O trabalho de Guindane, inclusive, foi premiado no Festival de Gramado de 2023 recebendo o título de Melhor Filme Nacional. É fato que a cinebiografia de Mussum passa ilesa de alguns episódios centrais de sua carreira – seja os bons ou os ruins – mas tal decisão artística não dá conta de menosprezar o trabalho e o carisma que Mussum irradiou para o país. Primeiro, enquanto ele se apaixonava e aproveitava o sucesso com o grupo Os Originais do Samba, assistimos a um artista que, em sua completude fazia o que amava e que, mesmo escondido da mãe, ele se aventurava pela noite e pelos shows. Num país fortemente carimbado pela desigualdade social e pelo racismo, o pequeno Carlinhos recebeu da mãe, que não sabia nem ler e nem escrever, o incentivo para os estudos e se tornar alguém formado na vida. 

A cena em que o pequeno ensina dona Malvina a pegar no lápis e assinar pela primeira vez o próprio nome arranca lágrimas emocionantes tanto dos atores em tela, quanto dos espectadores em suas poltronas. Mussum protagonizou mais de 40 longas-metragens e ficou nos Trapalhões por quase 30 anos. O elogio para o roteiro de Cursino é pertinente, pois, desde o começo, percebe-se que a narrativa não está interessada em preparar o astro até chegar em seu grande auge da carreira. Muito pelo contrário, a narrativa quer contar a vida como ela é, como ela foi, prioriza os dramas humanos, as encruzilhadas da vida, as decisões... 

Carlinhos (ou Mussum) sempre foi rodeado de verdadeiros amigos. Amigos leais. Amigos justos. É válido dizer que este filme é uma homenagem ao Dia da Amizade, pois, na vida de Mussum, os amigos era a única coisa que importava, acima do sucesso, da TV, do samba, da carreira, estavam seus amigos. A grande crise que o filme revela – não que esta tenha sido, de fato, a pior – é o momento crucial em que Mussum precisa tomar uma decisão entre o samba e a TV. Mais uma vez o sábio conselho da matriarca faz toda a diferença e acentua o ponto de virada do filme: “fica só na TV, meu filho”, orienta dona Malvina e, a partir de então, conhecemos, por inteiro quem é, de fato, o Mussum dos Trapalhões.   


Mussum, o nascimento, o sucesso, o “filmis” 

A caricatura que se fez do humorista Renato Aragão, aqui, vivido por Gero Camilo não surtiu muito efeito. Mas, é visível que o filme, mesmo tentando aliviar a personalidade de Aragão, ele ainda deixou a sensação de que o grande “chefe”, o que arquiteta todo o sucesso dos Trapalhões era por causa de sua inteligência e esperteza. Percebe-se que houve uma forçada tentativa de não manchar a imagem de ninguém. Os trapalhões tornou-se referência nacional e marcou gerações. Dedé Santana (Felipe Rocha) e Zacarias (Gustavo Nader) tornam-se irrelevantes para a narrativa. Dedé ainda conquista uma ponte maior, mas também, correndo o risco de se manchar sua imagem. Não se trata aqui, de afirmar que não houveram atritos, discussões e brigas entre os quatro humoristas que estiveram no ar por três décadas na TV. O próprio Mussum chega a afirmar que os quatro estavam meio estranhos um com o outro. Mas a história é de Mussum, então, o esforço é válido em manter tal postura. 

Gestar o verdadeiro Mussum foi um ato criativo televisivo fenomenal. O filme termina com algumas informações histórias e uma delas consagra Mussum como o único artista humorista negro da TV brasileira de maior sucesso e que permaneceu no ar por mais tempo. O único. Seus dramas com o preconceito, racismo e outros dilemas polêmicos não ganharam espaço de tela, mas houve a tentativa dos fatos ficarem subentendidos na narrativa. Cacau Protásio testemunhou um ato de discriminação quando dona Malvina se sentiu forçada a dar um empurrão no futuro do filho. Uma mulher pobre, de periferia e negra servindo a mesa de um banqueiro rico, branco e arrogante tendo que engolir seco porque precisava do mísero dinheiro que ganhava ali. 

Quase 30 anos nos separam da morte de Mussum, que faleceu logo depois de um implante de coração. Vida e arte, para Mussum sempre andaram de mãos dadas. Mussum fazia do impossível, o óbvio. Com Mussum, o filmis, embarcamos numa emocionante viagem de aventuras, risadas e um pouco de tudo aquilo que a vida da gente está exposta a enfrentar e a viver. A obra fílmica nos mostra que um artista não nasce simplesmente, mas é transformado, gestado, moldado partindo dos percalços do dia a dia e dos sonhos que alimentamos. Mussum, ainda hoje continua nos ensinando e nos dando motivos para sorrir.




Por Dione Afonso  |  Jornalista

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