02 Jun
02Jun

O escritor irlandês Bram Stoker [1847-1912] é considerado o pai da cultura vampiresca. Seu Drácula, obra de 1897 é a grande responsável por impregnar no imaginário dos leitores este universo no qual os vampiros tem suas próprias normas, regras de vida – ou de morte? – e costumes. Em 1992, o magnífico cineasta Francis Ford Coppola, ao ter contato com os escritos de Stoker, resolveu transcrever cada página para as telonas e com um elenco que teve nomes como Gary Oldman, no papel-título da obra, Winona Ryder, Keanu Reeves, Anthony Hopkins e Monica Belluci, o terror de Coppola deu ainda mais sucesso e visibilidade a este gênero gótico e vampiresco. 

Com quase um século depois de Stoker, conhecemos a escritora Anne Rice [1941-2021] que fez sua estreia na literatura com Entrevista com o Vampiro de 1976. Com tantas histórias sobre vampiros, rumores, contos, as mais variadas formas que contavam por aí de como eles viviam e quais as suas limitações, Rice é considerada como a mulher que conseguiu alterar estes rumores e deu novos rumos à mitologia dos vampiros. A obra de Rice, pelas mãos do diretor Neil Jordan ganhou impacto na cultura pop. Estrelada por Tom Cruise e Brad Pitt, os ícones Lestat e Louis ganham notoriedade e tornam-se principal referência para o mundo pós-moderno. A literatura de Rice é considera a mais inteligente do gênero e, portanto, agora, Entrevista com o Vampiro ganha nova versão adaptada para a TV. 


Entre perdas e ganhos 

Desta vez, o sensual Jacob Anderson dá vida a Louis du Lac, enquanto que Lestat de Lioncourt é interpretado pelo maléfico Sam Reid. Estas características estão diretamente ligadas aos atores, para mostrar que suas qualidades evidenciam nos personagens dando a eles camadas que o trabalho de 1994 não transpôs para as telonas. Anderson tem sensualidade, timidez, ambição, medo e desejo de conhecer o mundo. Enquanto que Reid apresenta o seu lado perverso, mal, arrogante, ganancioso, erótico, apaixonado e com aquele toque de brutalidade e paixão. Quem comanda a nova série da AMC+ é o showrunner Rolin Jones que consegue se distanciar do que Coppola nos trouxe há 30 anos sem, contudo, perder-se na mitologia já transcrita para o público. A série aproveita de um universo que já conhecemos e o supera incorporando nuances, formas e sentimos tornando-a maior e melhor. 

Os críticos leitores de Rice a consagram com sua obra mencionando que a autora não deixa de apresentar um universo inumano desconsiderando a humanidade presente. Há quem diga que a presença da vampira adolescente Claudia (Bailey Bass) constrói esta ponte relacional entre o perdido pós-vida e o segrede de se encontrar a morte enquanto vivemos. Os conflitos entre Louis, Lestat e Claudia são tão intensos quanto de episódio para episódio nesta primeira temporada. Jones constrói uma história de amor e paixão entre Louis e Lestat que vai além das condições satisfatórias e desiderativas em serem dois vampiros sem limites para o amor e o sexo, assim como sem limites para a violência e as brigas. 

Acredita-se que este é um ganho do filme de 1994 para a série de TV. Um não menospreza o outro. Coppola marca uma geração com uma obra que muda o modo da cultura pop pensar, escrever e até mesmo falar sobre os vampiros e tudo o que os rondam. Hoje, o novo trabalho consegue trazer a essência da obra original ultrapassando seus limites, até mesmo por conta dos avanços tecnológicos, cinematográficos, e das relações humanas que hoje vivenciamos. Ambientada naquela Nova Orleans de 1900, contexto forte de racismo, Louis se encontra um jovem homem negro aborrecido pelos limites que a sociedade branca impõe, mesmo ele sendo bem-sucedido financeiramente. Lestat, que se apresenta como um europeu francês, cheio de prazer e com o segredo da eterna juventude nas mãos surge com um pedido irrecusável para seu novo parceiro: a vida eterna. 


Uma entrevista original 

Na outra ponta desta narrativa, encontramos o jornalista sem sucesso em sua carreira, Daniel Molloy (Eric Bogosian). No filme ele foi interpretado por Christian Slater. Molloy conhece Louis ocasionalmente e vê neste humano a oportunidade de experimentar algo novo: um livro de sua vida. Encontramos Louis longe de Lestat, sem saber por onde ele anda aparentemente, acompanhado por um outro vampiro Armand. E aqui entra mais uma vez o elemento da humanidade: parece-nos que Molloy é o primeiro a não despertar o interesse e a sede de sangue de Louis. Este vê uma outra oportunidade de “suga-lo” e, ao aproveitar de sua frágil condição econômica, é como se Rice encontrasse aqui mais uma brecha social: ambos os mundos se conectam por suas fraquezas. Molloy pela falta de sucesso no trabalho; Louis pela falta de visibilidade social. 

A presença na série de um Molloy já de idade avançada, aposentado, com um baixo grau de Parkinson e vítima de um câncer coloca as coisas ainda mais realistas e próximas de nós. Se no filme, o vampiro Armand de Antonio Banderas nos proporcionou uma sensação manipuladora e ambígua, agora, na série, o personagem ficou nas mãos do ator Assad Zaman. O elemento da ambiguidade permaneceu, sobretudo sobre os olhares dúbios de Molloy. Na série, Louis surge como o dono da situação, controlador da própria vida e senhor de si. Armand é um simples senhor que governa a casa e os negócios para seu senhor e oferece o pescoço quando necessário. Mas a bondade era demais, e Molloy, com seu faro jornalístico, oferece para nós uma das melhores cenas no último ato do último episódio. Desmascara Armand e Louis e consegue extrair de seu entrevistado o segredo sobre Lestat. 

Portanto, não estamos diante de uma simples obra literária de sucesso que ganha novos públicos na TV. Estamos diante de um marco referencial para a literatura gótica e para a cultura pop. O entretenimento mudou completamente a forma de lidar com o gênero vampiresco. Anne Rice deixa para trás o que nos foi apresentado por Bram Stoker e o que aprendemos com os caçadores de Van Helsing. A nova série de TV consegue, mais uma vez, fazer a passagem do antigo para o novo e coloca o hoje em nova perspectiva diante de nossos olhos.




Por Dione Afonso  |  Jornalista

Comentários
* O e-mail não será publicado no site.