25 Jan
25Jan

O drama psicológico dirigido pela cineasta Justine Triet foi o grande vencedor de Cannes, recebendo a Palma de Ouro em maio de 2023. Seu lançamento encantou a todos e desde então, o trabalho francês vem ganhando crítica e público. Anatomia de Uma Queda, além de estar na disputa por Melhor Filme Internacional, a 96ª edição do Oscar também o coloca concorrendo na Categoria de Melhor Filme, Melhor Direção, Melhor Roteiro Original e de Melhor Atriz pela atuação firme e dificílima de Sandra Hüller. Um trabalho visceral que nos coloca diante de um drama psicológico no qual participa apenas três personagens em cena e um cadáver. Triet também assina o roteiro com a ajuda de Arthur Harari e juntos conseguem pôr em tela diálogos recheados de dor e de apreensão. 

A história segue o drama de Sandra Maleski que se vê diante de um julgamento que tenta acusa-la pela morte de seu marido, Samuel Maleski (Samuel Theis), após encontra-lo morto do lado de fora da casa. Segundo relatado, Samuel estava no sótão da casa, onde dava passos na reforma quando se desequilibrou e caiu no chão coberto de neve, resultando sua morte. Tendo dificuldades de provar o acidente e de acreditar que, de fato, o acidente aconteceu, Sandra é levada a julgamento, no qual, provar sua inocência parece ser algo impossível. Com a ajuda de seu filho Daniel Maleski (Milo Machado Graner), que possui deficiência visual, essa história pode ganhar um desfecho mais diferente. 


A busca pela verdade e o dilema moral 

Primeiro, é preciso ressaltar o papel fundamental do filho em ter que testemunhar algo que não viu e não presenciou. O terceiro personagem que entra em cena é o advogado Vincent (Swann Arlaud), que foi um grande amigo de Sandra durante a juventude. O mais interessante do filme não é tanto o que vai se sucedendo de cena em cena, mas, o que, de fato, fica fora do quadro, aquilo que as câmeras não puderam captar, mas que você sabe que estão ali e que aconteceram. Uma das magias do cinema mais incríveis é quando ele te permite criar, imaginar, montar a sua própria experiência diante do que está sendo relatado, dito. É nesse contexto que entra o grande dilema moral de Daniel em ter que testemunhar diante de fatos que ele não pôde vivenciar. 

Triet, nas cenas que acontecem no tribunal, consegue nos passar o que realmente importa dentro de um julgamento: não é tanto a justiça ou a verdade que mais importam ali, mas a dialética, o argumento, a capacidade que testemunhas têm de manter seu discurso coerente até o fim, sem deixar pontas soltas para que se questionem os fatos ocorridos. Sandra se encontra em várias encruzilhadas difíceis de se libertar. Daniel, por sua vez, tenta manter seu discurso sem receber qualquer influência de sua mãe. Inclusive, duas cenas nos tocam muito: a primeira é quando Sandra pede para que seu filho não tenha medo de dizer o que sabe, que aconteça o que acontecer, que ele seja verdadeiro com o que sente e com o que ouviu. A segunda é quando Daniel pede pra ficar sozinho, e Sandra precisa passar a noite em um quarto de hotel. O choro da mãe no táxi é um choro sufocante. 

O filme trabalha o tempo todo com a ambiguidade. Justine Triet se preocupa em manter argumentos sólidos diante dos fatos, e tudo isso sem recorrer a recortes em formato flashbacks. O que é incrível e super inteligente da diretora, manter a atenção do público ao que está acontecendo em tempo real, e não com memórias dispersivas do passado. O mais intrigante é que mesmo com a inocentação de Sandra, Triet decide não nos revelar o que aconteceu com Samuel. 


A metalinguagem e a ficção 

Sandra e Samuel são dois escritores renomados. Enquanto ele completa sua renda sendo professor, ela trabalha com traduções e outros escritos. Os dois são escritores de ficção e quando a oposição leva esses escritos para o tribunal, a metalinguagem entre o que é fictício e o que pode ser espelho da realidade entra em cena de forma surpreendentes. Com todo o esforço do advogado de acusação, Triet deixa caro em seu roteiro e direção que essa não é ferramenta forte o bastante para inocentar ou para condenar alguém diante de um crime ou de qualquer fato ocorrido. Se o fictício é real ou não, o real não pode deixar dúvidas. 

O primeiro ato do filme nos guia pela busca de o que causou o acidente. Com a certeza de que só haviam 3 pessoas na casa, mesmo assim, Daniel estava fora, passeando com seu cão-guia, restam apenas Sandra e Samuel. O segundo ato é onde já entra as cenas do tribunal, a metalinguagem dos escritos deles e a presença forte de Daniel como única testemunha que a mãe tem a seu favor. É nessa parte que o espectador assiste a cena em que um áudio é revelado, onde o casal aparentemente está brigando um dia antes do acidente. Neste momento do julgamento nós temos a versão do áudio e a contextualização de Sandra, contando o que de fato aconteceu. 

Tal qual Machado de Assis fez com Bentinho e Capitu: traiu ou não traiu?, aqui temos a mesma análise: matou ou não matou?. O suspender a verdade não é uma forma de não confiar na justiça. Pelo contrário, Triet não deixa o tribunal e seu serviço em maus lençóis. A figura da justiça e o trabalho dos juízes é muito bem valorizado aqui. Por fim, Anatomia de Uma Queda nos permite poder criar e recriar atos de nossa vida, podendo sempre nos perguntar, até onde podemos ir e qual é o nosso limite.




Por Dione Afonso  |  Jornalista

Comentários
* O e-mail não será publicado no site.