06 Jan
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Obras que retratam casos reais – de dor ou de alegria, de vitória ou de mortes – sempre tem um lugar muito especial nos corações dos amantes pela história e pelo heroísmo de homens e mulheres que lutaram pela vida. A Sociedade da Neve, explora um fato que já teve diversas nuances, tanto na literatura, quanto no audiovisual. Desta vez, quem nos apresenta a história é o cineasta espanhol J. A. Bayona, que decide retratar sobre o acidente que aconteceu em 13 de outubro de 1972. Um avião uruguaio com um time de jogadores de rúgbi e seus amigos e parentes sobrevoava os Andes rumo ao Chile. Contendo 45 passageiros, o avião se choca com as montanhas e cai num mar de neve e frio extremo deixando mortos, feridos e alguns sobreviventes. 

Precisamos ressaltar aqui que a aposta da Espanha para o Oscar tem um trabalho excepcional com a fotografia pelo Pedro Luque que conseguiu, através de suas lentes, nos transmitir sentimentos e nos conectar com o drama e a dor daqueles sobreviventes. Bayona não se prendeu na apresentação dos personagens principais e dos sobreviventes até a última hora do filme, muito pelo contrário, logo no início nossos olhos já se espantam com o avião partindo-se ao meio no alto dos Andes, caindo no conhecido Vale de Las Lágrimas resultando em 16 mortes de imediato. O impacto com membros se quebrando, pessoas se espremendo, sangue gotejando, foi um trabalho impecável para retratar tão duro é uma cena com um acidente de tamanha magnitude e desespero. 


Da morbidez do ambiente para a dinâmica de grupo 

Quando você se encontra com metade de uma aeronave, jogada num mar branco de neve e frio, a morbidez e o trauma desta cena podem transmitir o que nos espera dos próximos minutos. Contudo, entre os sobreviventes, nasce uma narrativa bastante dinâmica que nos ajuda a amenizar do drama que o acidente está provocando e nos coloca dentro da cena onde cada um procura meios de amenizar o medo de estarem ali. Enquanto um reúne numa mala tudo o que há de comida, outro constrói uma forma de derreter a neve e terem água para beber. Outros reúnem os corpos dos falecidos e outros, as roupas de frio. O roteiro, então, decide nos colocar dentro de um grupo, onde a maioria são homens jovens e atléticos a trabalharem em harmonia na busca por sobrevivência. 

Essa rotina se quebra com a notícia que ouvem por um rádio de que as buscas foram encerradas. A dor e o grito de lamento por parte de um dos integrantes corta a nossa alma, tal qual corta a neve da cordilheira como se uma avalanche soterrasse todos. A contagem dos dias em que esperam por um socorro não nos angustia, pelo contrário, nos surpreende, pois percebemos que a sede e a garra pela vida exalam daquele pequeno grupo que não se abala com os amigos que não suportam o frio e a neve e não resistem. O número de mortos aumenta a cada nascer do sol. Apenas 29 dos 45 passageiros sobreviveram ao acidente, mas este número acaba se tornando irrelevante para nós, pois segundo relatos do livro do jornalista Pablo Vierci, que inspirou a produção, o grupo não brigou uma única vez ao longo dos mais de 70 dias em que esteve perdido. E isso, transmitido nas telas, nos cativou. 

É impecável, também a decisão de Numa Turcatti narrar a história. O ator Enzo Vogrinci coloca esperança e medo em sua voz; coloca sonhos e morte em cada tonalidade e não nos deixa perder um detalhe sequer. Não é uma narrativa exaustiva e que o tempo todo quer nos mostrar algo. Turcatti não está preocupado em contar tudo o que os olhos veem, mas em nos apontar aquilo que o coração precisa sentir. Quando ele não resiste e morre, sentimos junto dele, pois o espectador acaba se conectando e torcendo pela sua sobrevivência. Bayona também deu ao filme um caráter mais romancista e menos documental, o que foi possível acrescentar camadas mais instigantes e que deu à obra um final heroico e digno. 


Respeito e heroísmo  

Ousamos afirmar que é um heroísmo sem muitos holofotes, mesmo vendo aquela cena final de milhares de pessoas e imprensa nos arredores do hospital só para verem os sobreviventes. A narração ainda afirma que eles foram chamados de Os Heróis das Montanhas. Também teria sido um bom título para o filme, mas A Sociedade da Neve, faz coro À obra de Vierci, e “sociedade” remete a grupo, harmonia, alteridade, fraternidade e se aqueles amigos não tivessem trabalhado tudo isto, talvez não teriam sobrevivido. Se não morressem no impacto do avião, poderiam ter outra morte mais cruel, pelas mãos humanas. A forma como a obra respeita a vida e a dignidade de cada pessoa também é notada, mesmo no momento em que alguns, para sobreviver, levanta a hipótese de se alimentarem dos corpos dos que morreram também foi muito bem roteirizada e filmada. 

O canibalismo não caiu no pecado do estilo gore, mas a escolha parte para o drama psicológico, sobretudo daqueles que não aceitam a decisão, mas que precisam tomar senão morrerão de fome. Alguns dos sobreviventes demonstraram uma fé católica muito fiel e isso não ficou de fora da narrativa. O embate entre fé, fidelidade a Deus, pecado e a sobrevivência foi uma tortura sem precedentes e só abrilhantou ainda mais a relevância do filme e do trabalho de Bayona. Tal decisão reveste de respeito e de silencio, tanto por parte de quem, morto, teve que garantir a sobrevivência dos outros, quanto de quem, vivo, teve que tomar uma decisão tão inumana e repugnante. 

Foram mais de dois meses perdidos na neve. Percebemos que a direção do cineasta espanhol não se importou em glamourizar com o brilho hollywoodiano e fez desta história trágica uma das obras mais significativas para eternizar o que esse grupo teve que se submeter para sobreviver. O que se diz nas primeiras cenas do filme, na qual muitos dos jovens, na tentativa de levar seus amigos à viagem, afirmavam poder ser a última viagem de suas vidas, nunca imaginariam que isso poderia se concretizar de forma tão impactante e cruel.





Por Dione Afonso  |  Jornalista

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