23 Dec
23Dec

Emerald Fennell já não é mais simplesmente um nome, mas é uma marca que desperta curiosidades em amantes do cinema como nós. Fennell conquistou sua credibilidade e inteligência quando, em 2021, seu primeiro longa-metragem Bela Vingança conquistou o Oscar de Melhor Roteiro Original. Protagonizado por Carey Mulligan (que faz uma pequena participação incrível em Saltburn), Fennell explorou o universo hiper sexualizado com um toque de gore e de thriller vingativo despertando no público aquela sede curiosa em tentar desvendar o resultado final. Trapaças e vidas regadas a ativismo exploratório e interesses desmedidos a qualquer custo ainda não haviam recebido um tratamento pelo audiovisual com a mesma coragem de Fennell. Contudo, sua obra – mesmo tendo chegado em tempos oportunos – ainda gera desconforto e certo receio por tratar de temas tão humanos, mas tão banais. 

Quem nos conta a história é Barry Keoghan dando vida ao estudante universitário Oliver Quick. Pobre, aluno bolsista e, de acordo com sua versão narrativa, filho de pais alcoólatras e dependentes químicos encontra no ambiente estudantil um lugar hostil a bullying, solidão e fracasso no quesito “fazer amigos”. Quick conhece Felix Catton (Jacob Elordi), filho da alta sociedade, da grande família Catton que esbanja poder, riqueza, muito, muito dinheiro, luxúria e desejos vazios de vida. Os Catton são donos de uma mansão chamada de Saltburn, onde os desejos e prazeres da vida privilegiada são realizados. E, onde esta nossa história acontece... 


Por que “odiamos” a vida aristocrata? 

Quando não se é “o popular” de um lugar, de uma faculdade, sobretudo, tenta-se, pelo menos, ser próximo ou melhor amigo daquele que é popular. E foi por esta via que Oliver se embrenhou. Seu primeiro contato com Felix, o charmoso, o garanhão, o “garoto gostoso que é tudo”, aconteceu da forma mais original que o roteiro pôde nos apresentar. De fato, o primeiro ato deste filme é regado de tamanha originalidade que encanta os olhos de quem o assiste. Oliver presta um serviço caridoso a Felix, e, a partir daí a amizade começa a tecer laços humanos entre os dois. Ressalta-se que o lado aristocrático de Felix não exala muito num primeiro instante. O jovem Elordi se distancia do homem tóxico Nate (da série Euphoria) e de Elvis do machista violento Elvis (do filme Priscilla) e dá lugar a um jovem que, mesmo tendo tudo – até demais – é humano e generoso e ganha Oliver com sua bondade. 

Contudo, parece que o jovem ator não consegue se despir de sua máscara de homem hétero top tóxico e machista por muito tempo. O segundo ato abre com a chegada e apresentação de Saltburn, aquele paraíso paradisíaco que se torna o objeto de desejo (não só de Oliver Quick), mas de todo o filme. Oliver parece ficar enfeitiçado pelo “príncipe encantado Felix Catton”. Seu interesse pelo amigo bonito desenvolve a tinge um novo patamar de interesse: não só amigo, mas, muito mais do que isso. A chegada de Oliver à mansão dos Catton é, no mínimo curiosa, pontos positivos, mais uma vez para a sagacidade do roteiro de Fennell. No centro está a matriarca Elsbeth Catton, interpretada por Rosamund Pike. Pike é aquelas ricas que falam sem pensar e de forma desordenada e descontrolada. Aquelas mulheres da alta sociedade que não apresentam nenhuma forma de caridade e que não tem noção nenhuma do mundo lá fora. É esnobe e sem escrúpulos. 

Oliver Quick fica assustado pela maneira que aqueles ricos vivem. Seus olhos – e que olhos, heim Keoghan – azuis, quando enquadrados na tela fechada, são olhos de deslumbres e de grande emoção, misturados com aquela felicidade descontrolada ao mesmo tempo que despertam certas dúvidas ou incertezas. Para Fennell, e para nós que assistimos, não é importante saber os porquês que movimentam o realizar de cada ato, como por exemplo, porque foi tão simples a estadia de Oliver ali; porque foi tão fácil a caridade da família por ele e porque ele é tratado sempre com tanto cuidado e apreço. Parece, de fato, que os Catton é uma família bondosa e que pensa no outro... até a página seguinte. 


O terceiro ato e o fim da originalidade 

Oliver é uma farsa. É tudo uma farsa. Ele mentiu pros Catton. Ele mentiu pro roteiro. Ele mentiu pra mim e pra você. E cada um que assistir Saltburn também será enganado. Aqui, aproximamo-nos muito de Bela Vingança, mas também nos distanciamos muito do que poderia ser uma solução original de Emerald Fennell. Tradição aristocrata, comportamentos de etiqueta da família, voyeurismo, comportamentos exóticos e regados à sexualidade liberal foi uma jogara de mestre até aqui. É preciso abrilhantar as atuações de Elordi, Keoghan, de Alison Oliver e Archie Madekwe. Oliver deu vida a Venetia, irmã de Felix e Madekwe era Farleigh, um amigo da faculdade também resgatado por Felix por sua “bondade caridosa”. 

Mas Fennell se perde ao dar, no final, resoluções simples e já “batidas” neste universo de vingança e crítica social. Seu trabalho com Saltburn nos entrega uma história sombria e carregada de sentimentos perturbadores sobre o que pode acontecer com jovens que sonham, um dia, conquistar a aristocracia e seus requintes e luxo. A metáfora de Fennell, quando, em seu roteiro, ela adiciona na fala de Oliver “eu sou um vampiro”, quando este desenvolve uma relação sexual “num dia impróprio” com Venetia é de arrepiar-nos. A metáfora funciona perfeitamente para ambos os lados: de um, sugando as oportunidades que a classe rica oferece e, de outro, sugando os prazeres e a sede insaciável em fazer parte dela. 

Repulsa àquilo que vê é o sentimento que resume a experiência diante de Saltburn. E, claro, se o tema da estranheza de um universo paralelo ao nosso, com mais riqueza, com mais poder, com mais vidas esnobes e vazias de sentimento não for um tema que te interesse, talvez ele não seja feito pra você. Mas a sátira é picante, instigante e nos faz rir – de nervoso ou raiva – diante de diálogos nocivos ao ser humano diferente, ao humano diferente e com menos oportunidades na sociedade.





Por Dione Afonso   |    Jornalista

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