30 Apr
30Apr

Nascido em Houston, George Floyd era alto, musculoso, alguém cuja estatura se destacava na multidão. Era jogador de basquete e futebol além de gostar do Hip-Hop. Aos 46 anos, Floyd tinha uma filha de 6 com Roxie Washington. Mas, essa história mudou. Se teve que mudar, nunca saberemos, só sabemos que ela mudou de percurso do jeito mais cruel e desumano. Aos 25 de maio Floyd foi vítima de preconceito e racismo que o levou à morte. Abordado por um policial, depois identificado como Derek Chauvin, este o asfixiou pressionando o joelho em sua nuca contra o asfalto. “Eu não consigo respirar”, foram as últimas falas de Floyd que ao serem ignoradas por Chauvin, o levou a óbito.

Era uma segunda-feira na cidade de Minneapolis, Floyd só teve a infelicidade de estar portando uma cédula falsa. A cidade é localizada no noroeste dos EUA. O ator negro Will Smith, naquela semana publicou em suas Redes Sociais lamentando como que ainda hoje o preconceito e o racismo ainda matam muita gente. “O racismo não está piorando, só está sendo gravado agora” e, foi o que aconteceu. No exato momento do ocorrido, Darnella Frazier estava passando próximo ao local do ocorrido, ela instantaneamente sacou o celular do bolso e filmou a cena. 

[25/05/2020: MINNESOTA, CALIFÓRNIA, EUA].

 

 

51 anos, viúva, com 5 filhos e dois netos. O nome? Pode ser Ana, Maria, Catarina, Beatriz, Carla, quantas demais mulheres e negras podem estar nessa situação. “Achei que eu ia morrer”, é o que ela fala hoje após ser asfixiada por um policial num bairro de São Paulo. Jogada no chão, arrastada, a vítima apresenta uma perna fraturada, escoriações no rosto e condições físicas e psicológicas fragilizadas a ponto de ter medo de sair de casa. 

“Quanto mais eu me contorcia de dor, mais prazer ele sentia em colocar todo o peso de seu corpo sobre meu pescoço”, afirma a vítima. Em menos de uma semana após o assassinato de George Floyd nos EUA, o Brasil vivenciou mais uma agressão inspirada no racismo e no preconceito. Durante esses episódios, a onda do “Vidas Negras Importam” ganhou o mundo revelando a descrença de uma humanidade que não aceita que tudo o que possui vida, tem o mesmo valor. Ao contrário, continuam proliferando uma ideologia em que uma vida possa valer menos que a outra. 

[30/05/2020: SÃO PAULO-SP, BRASIL].


 

Na inauguração do cicatriz.blog, nossa equipe quer apresentar nessas duas décadas de existência de Harry Potter [2001-2011], discursos narrativos que não só intertextualizam, mas também tocam de maneira instigante, o contexto atual. J. K. Rowling teve uma ideia, uma inspiração, um sonho pautado num ideal. Ideal porque ele teve início, ela vislumbrou o meio e sabia o fim que tudo aquilo atingiria. Ideal. Saber onde se quer chegar.

O nome cicatriz, claro, nos aponta diretamente para essa história. Sim. Harry Potter é a nossa inspiração. Harry Potter é movimento, porque nos faz olhar o mundo e sonhar com ele diferente, melhor, transformado. Harry Potter é relação, pois, ao olhar a fundo cada personagem, começamos a criar identificações. Harry Potter é caminho: quem parecia ser vilão, encontrou o amor; quem parecia ser sem talento, salvou os amigos; quem parecia covarde, sacrificou-se. Por fim, Harry Potter é história, Harry Potter é a nossa história.

E é essa história que queremos trazer aqui. Não, não a do Harry, mas a sua, a da Maria, a do Pedro, do Wesley, De George Floyd, da Ana, histórias de vida, reais, inspiradoras.


Toda vida importa

Não é só a negra, a feminina, a LGBTQIA+, a jovem, a branca, a loira, a indígena, a estrangeira, a ruiva. Toda vida importa. Também a ecológica, pois em cada folha também pulsa vida. Bio vem do grego (βιο = bíos) que significa vida. Biodiversidade, é a vida em suas esferas e culturas das mais variadas. Entre essas esferas, está o homem e a mulher. Seres vivos em perfeita harmonia com tudo o que tem vida.

Não nos resta dúvidas: se há dificuldade em respeitar as diferenças no cotidiano, é óbvio que essa concretude humana será transmitida e reafirmada nas artes que os próprios humanos fabricam. E não é isso, o cinema? Uma arte? Uma arte fabricada, produzida, criada por mãos humanas que retratam a vida, as experiências, histórias de amor, avanços da ciência, enfim... a nossa vida, nossa história. Claro que no auge de Hollywood o cinema sofreu uma corrupção: de arte, tornou-se mero produto comercial. Ao invés de representar as vidas diversas, ele encolheu-se numa pequena casta representativa em que a obra não era mais vendida pela arte e história contada, mas sim, passou a ser comercializada pelo ator galã, pela atriz exuberante e rica, pelo cineasta famoso e bem pago.

Por fim, o que era pra contar a nossa história e provocar uma metanoia social, passou a ser artigo de luxo do império burguês. Hollywood torna-se a cidade modela das Belas Artes, do cinema de luxo, dos estúdios falsos de plásticos e MDFs. Ou seja, enquanto a vida lá fora pulsava sangue, morte, corrupção, miséria e fome, nas telonas cinematográficas Marilyn Monroe exibia seus mais estonteantes cabelos loiros seduzindo-nos a troco de um beijo (Torrentes de Paixão, 1953 – Henry Hathaway).

Estamos diante de uma Hollywood que produz e se apropria de elementos culturais firmados e sustentados por uma ideologia antropológica não-abrangente. Para o cinema, Hollywood representa um retrocesso imperialista nada inclusivo. No entanto, um outro grito, um novo cinema começa a ressurgir do gripo do povo. Mais pra frente começa a aparecer o cinema francês até chegar ao que hoje chamamos de produção de língua não-inglesa. Nome este que não ajuda a amenizar esse estereótipo classista.


A família Malfoy e a soberania social atrelada à disputa de poder

Antes de se tornar chumbo para os negócios do mercado, o cinema era a mais bela arte que os homens puderam criar. Mas cinema continua sendo belo, ele ainda não perdeu sua essência, sua arte. Só precisa recuperar seu lugar de fala. Cinema também é vida, nele está a vida, nele há algo que pulsa e que movimenta nossa história. Porque o cinema só existe porque cada um de nós temos algo pra contar. Isso é o cinema.

A forma como a família Malfoy é introduzida na saga de J. K. Rowling é bastante categórica: “eu sei que vou ficar na Sonserina, toda a nossa família é de lá, imagine ficar na Lufa-Lufa” – diz Draco Malfoy. A tensão entre bruxos da Sonserina e bruxos da Lufa-Lufa é visível, pois enquanto que uma só admitia os bruxos de puro-sangue, a outra não fazia distinção: “Ensinarei a todos, sem distinção” (Helga Hufflepuff, Fundadora da Lufa-Lufa). Salazar Slytherin, o Fundador da Casa da Sonserina não aceitava a ideia de que os chamados bruxos mestiços – ou seja, os nascidos de pais trouxas, não-bruxos – podiam aprender magia. Esses eram chamados de “sangue-ruins”. Era a maior ofensa que se podia dizer numa conversa.

Parece que isso não está muito longe do que assistimos hoje, sobretudo nos relatos descritos acima. Ainda hoje nossa sociedade está imergida numa política social que separa uns e outros classificando quem tem sangue puro e quem tem sangue-ruim. Ainda não é comum, em pleno século XXI presenciar igualdade, fraternidade, sororidade, respeito e partilha entre todos e quaisquer seres humanos. Homens, mulheres, crianças, negros, idosos, brancos, lgbtqia+ podem e devem participar dessa nossa história. Somos iguais e toda vida importa.

Draco Malfoy, já nos seus 11 anos em Harry Potter e a Pedra Filosofal [2000], descarrega um diálogo doentio e perverso. A cena acima tem continuidade. Depois de apresentar o poder que corre em suas veias – sangue puro, filho de bruxos verdadeiros e nobres – ele literalmente despreza sem economias verbais Rúbeo Hagrid – mestiço, meio humano, meio gigante – o Guardião das Chaves de Hogwarts: “ele é uma espécie de empregado, não é? Ouvi falar que é uma espécie de selvagem. Mora num barraco no terreno da escola e de vez em quando toma um pileque, tenta fazer mágicas e acaba tocando fogo na cama (ROWLING, 2000, p. 56)”. 

O poder é relação. Hannah Arendt diz que ele é em potência. O poder tem uma relação mais antropológica que polícia e econômica. O poder eleva o homem e torna-o violento. Confira como que encerra esse discurso em que Malfoy destila ódio e nojo a quem não é igual a ele: “eu realmente acho que não deviam deixar outro tipo de gente entrar. Não são iguais a nós, nunca foram educados para conhecer o nosso modo de viver. Alguns nunca sequer ouviram falar de Hogwarts até receberem a carta. Acho que deviam manter a coisa entre as famílias de bruxos. Por falar nisso, qual é o seu sobrenome?”. O discurso “inaugural” da família Malfoy encerra assim. É o sobrenome, a purificação da raça humana (bruxa, nesse caso) que importa. Nesse caso, não é toda vida que importa. É a minha, porque eu sou nobre, rico, poderoso, tenho sangue puro, sou branco, loiro, hétero.


O cinema e o discurso de poder

Se poder é relação. Relação pressupõe um ser que se relaciona. Se o homem estabelece relações de poder, logo essa relação é também passível de cinematografia. Pois, mais uma vez, cinema é vida, porque narra histórias vivas e vividas. Resta-nos então, perceber os discursos que o cinema constrói com suas narrativas cinematográficas. A historiografia ganha com o cinema um novo recurso de pesquisa histórica. Percebam que ao mesmo tempo que um filme se torna fonte de pesquisa, ele usou fontes reais, de experiências de vida para construir um roteiro. Assim também, com o Superman, o Capitão América, Harry Potter, Jedi, aconteceu a mesma coisa. Heróis são categorias da ficção, no entanto, são frutos de uma experiência real que permitiu serem criados. Usando, nesse produto final, elementos extraordinários que só é possível experimentar na imaginação fictícia.

Além de expressão cultural, arte, o cinema é representação. Realidades concretas, vividas, são representadas através de cenas escritas, roteirizadas, produzidas e gravadas. Aqui está a força dos discursos de poder que o cinema constrói. Assim como construção de saber histórico e de poder, o discurso fílmico também pode representar um contra-poder. Nesse caso, a história representada pode construir um discurso de soberania, hegemonia, submissão, dominação (o que foi mesmo que vimos com Draco Malfoy? E com George Floyd e a mulher de São Paulo?). Resta agora saber se a história representará um discurso de resistência ou não.

Concluímos que o Cinema com seu produto, o filme, deve se tornar um discurso onde todos possam representar suas vozes, suas vidas, suas diversidades, culturas e símbolos. A cada cena, o discurso representado precisa encontrar ecos na vida cotidiana daqueles que estão sendo representados. Monroe foi sim, uma grande artista de Hollywood, agora devemos nos perguntar, quem são hoje, os grandes artistas do Brasil, da Venezuela, da Amazônia, da Rua Fioravante Padula, do meu bairro, da minha casa.


“Existe todo tipo de coragem. É preciso muita coragem para enfrentarmos os nossos inimigos, mas coragem maior para defendermos os nossos amigos”

(Dumbledore, 2001, p. 205)



Por Dione Afonso

Foto: Harry Potter e as Relíquias da Morte - parte 1  

Jornalismo PUC-Minas

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