30 Aug
30Aug

 

“Oi, meu nome é Ritiele Ferreira Costa.

Sou graduanda em Engenharia Ambiental. 

25 anos.

Preta. 

Como muitos da nossa raça, já sofri racismo. Desde ouvir conselhos sobre qual cor mencionar em formulários de inscrição para cursos até ser perseguida pelo segurança de algumas lojas.

Ouvi de homens brancos que a cor diz muito sobre o caráter.

Um episódio que muito me marcou nos remete ao meu Ensino Fundamental, lá no primário.  4° ano da Escola Pública. Iria acontecer uma festinha e minha mãe me arrumou toda. 

Uau!

Nossa!

Eu estava me achando linda!

Minha mãe arrumou meu cabelo com duas “Maria ‘chiquinhas’”. Nesse dia, uma coleguinha me disse que meu cabelo não combinava com aquele penteado, pois parecia palha de aço. Desde aquele dia eu chorava pedindo a meus pais pra alisarem meu cabelo já aos  9 anos de idade. Depois disso nunca mais me achei bonita, vivia com cabelo preso num coque. 

No auge de completar 15 anos,  um professor me humilhou  na frente da sala, pelo simples fato de eu estar com a boca machucada e ter olhado no espelho de bolso. Ele disse: “ei! Pra que tu tá olhando no espelho? Tu não tem conserto, não! Tua cor não é bonita, você é feia”. 

Dessa vez eu não me calei e discuti com ele.

Demorei muito tempo pra me aceitar e me ver linda. A representatividade de algumas pretas famosas e filmes como Pantera Negra me ajudaram muito. E hoje, depois de muito tempo, estou usando meu cabelo natural,  sem me importar se os outros vão gostar ou não. Por que eu estou me amando.

[RITIELE, estudante, Manhumirim-MG].

 

 

“Agora, mais do que nunca, as ilusões da segregação ameaçam nossa existência. Todos nós sabemos a verdade. Mais coisas nos conectam do que nos separam. Mas em tempos de crise, os sábios constroem pontes, enquanto os tolos constroem barreiras”.

[T’CHALLA, filme “Pantera Negra” de 2018].

 

 

Na noite do dia 28 de agosto de 2020 fomos acometidos com o comunicado da morte de Chadwick Boseman, 42 anos. Boseman ficou reconhecido por interpretar o Rei T’Challa, Rei de Wakanda, um país fictício africano. T’Challa incorporava a identidade do Pantera Negra. O primeiro herói negro protagonista das telas do cinema e da cultura de heroísmos do entretenimento. Até então, não tínhamos visto um negro ser reconhecido na identidade de um herói altamente importante nas telonas do cinema.

Óbvio que isso provocou um novo olhar em todo o mundo. Muitas crianças negras, homens e mulheres negros começaram a se ver no cinema. Sentiram-se representados. Os estereótipos brancos e de olhos claros não eram os únicos capazes de poder sobre humanos para salvar o mundo. Um herói da cor da minha pele, também pode ser capaz de algo grandioso e extraordinário.

Existem histórias que não pedem para ser contadas. No entanto, elas acontecem, tornam-se atos sem aviso prévio e nos acometem de forma perversa. Todos nós conhecemos o legado que Pantera Negra representa para o cinema, para o universo cinematográfico dos super-heróis e para a luta por reconhecimento e visibilidade de grupos que sofrem exclusão e preconceito.


Nasce num contexto político da não-representatividade

Para quem não sabe, o herói Pantera Negra foi criado por Stan Lee e Jack Kirby em 1966. Essa data é muito significativa, pois em 1965 o presidente dos EUA, Lyndon sanciona o fim das políticas eleitorais discriminatórias decorrentes da segregação racial no Estado. Negros passam a ter direito de voto como qualquer outro cidadão estadunidense. Mais de 40 anos depois os EUA tiveram o primeiro presidente eleito negro: Barack Obama torna-se o 44º presidente dos Estados Unidos aos 47 anos.

Fica claro para nós como que a arte fílmica começa a construir narrativas pautadas na vida social. Também fica claro para nós que os heróis fictícios que vemos nos filmes são inspiração da vida real. Ou seja, eles nascem de um contexto de grito e de protesto. Algo que a sociedade precisa acordar e lutar por isso. Vejamos, por exemplo, o contexto em que nasce o soldado Steve Rogers: o Capitão América é criado com o objetivo de salvar o país da guerra. Muitas famílias estavam perdendo seus parentes, sendo dizimadas por um poder opressor muito cruel. Logo, um herói fictício nasce desse contexto bélico afim de dar esperança a quem já considera estar numa guerra perdida.

A primeira vez que T’Challa apareceu nas HQs dos super-heróis da Marvel foi em 66 no time do Fantastic Four #52. Mas, essa luta por representatividade e visibilidade negra não acontece de forma clara. T’Challa surge amparado por outros heróis. O time do quarteto, por exemplo, são uma “família comum”, numa cidade comum, sem sofrer esse tipo de preconceito. O herói negro e de origem africana só vai receber sua história protagonizada em 1973 na HQ Jungle Action #5. 

Por fim, o herói de matizes africanas traz para pauta o legado hereditário e de caráter forte da religiosidade africana; traz a cultura africana fortemente marcada pela alegria e rituais, danças, músicas e cultura local; traz a sabedoria, conhecimento e poder tecnológico, afinal, como qualquer outro ser humano, eles também sabem lutar por seus direitos e buscar conhecimento sobre eles; mesmo sendo o primeiro herói negro a surgir nas histórias, logo depois outros começam a encabeçar essa cultura representativa: Falcão (1969), Luke Cage (1972), Blade (1973) e Tempestade (1975) da Marvel Comics e Lanterna Verde John Stewart (1971) e Raio Negro (1977) da DC Comics.


O poder das narrativas na construção de maior “representatividades”

Quando Spike Lee, cineasta negro esteve no Brasil, ele disse o seguinte: “na primeira vez em que estive aqui, em 1987, fiquei chocado ao ver que na TV, em revistas, não havia negros. Melhorou um pouco. Mas há muito a fazer. Quem nunca veio ao Brasil e vê a TV brasileira via satélite vai pensar que todos os brasileiros são loiros dos olhos azuis”. Para Foucault, “o racismo é o meio de introduzir [...] um corte entre o que deve viver e o que deve morrer”. O racismo te põe numa relação de guerra: “se você quer viver, é preciso que o outro morra”.

Quando mencionamos aqui “representatividades” é para, de certa forma, desmistificar essa luta pela visibilidade negra. Não porque não é necessária, a jovem Ritiele nos mostra que essa luta ainda é realidade entre nós. O que queremos dizer é que não queremos vencer em detrimento de outros grupos. O que queremos é que possamos estar ganhando junto com todos. Está na hora de brancos, pretos, pardos, índios e tudo o mais... todos, possam ganhar essa luta humanitária juntos. Está na hora de histórias como as da Ritiele, da Ana, do João, do Wesley, do João Pedro torne-se realidade vencedora ao lado de um grupo que vem ganhando há décadas sem se importar que um outro grupo vem perdendo e até morrendo por conta de uma indiferença humana que mata.



“O grande problema é colocar seu dinheiro onde está sua boca. Você não poder escalar um cara negro para ser o super-herói principal de um filme não pode te deixar calado. Está no meu DNA ter essa conversa. É uma grande oportunidade para mim fazer parte do MCU e é meu trabalho garantir que o universo Marvel seja o melhor possível”

(Anthony Mackie, ator negro e escalado para ser O Falcão no MCU)


 

 

Por Dione Afonso

Jornalismo PUC-Minas

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