Maria Gomes de Oliveira, baiana, nascida a 17 de janeiro de 1910 tornou-se a Rainha do Cangaço quando se uniu ao grupo de Lampião. Maria Bonita, um de seus apelidos, sofreu na juventude por conta de um casamento arranjado pelos pais. Este matrimônio era marcado pela infidelidade do marido alcoolatra, maus-tratos e agressões. Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, é pernambucano e a história tem dificuldade em datar seu nascimento, variando entre 1897 e 1900. A história do Cangaço, no Brasil e a trajetória de vida de Lampião e Maria Bonita ainda são temas de pesquisas biográficas por conta das lacunas na linha temporal. Portanto, narrar tal jornada é sempre um grande desafio, pois há fases turvas, de grandes incertezas sobre o que, de fato, acontecia com o grupo de Lampião, quando este se propagava no sertão nordestino, desde o Estado da Bahia, até o Ceará, Recife. Maria Bonita e Lampião tiveram suas vidas ceifadas em 1938, no município de Poço Redondo, em Sergipe. Com os corpos abandonados no local, o coronel percorreu os estados nordestinos exibindo as cabeças como troféus. Maria Bonita e Lampião tiveram uma filha, batizada de Expedita.
Estamos diante dos últimos anos de vida do grupo que foi liderado por Lampião. A jornalista Adriana Negreiros, que viveu parte de sua vida em Fortaleza, capital do sertão nordestino é autora do livro Maria Bonita: Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço [2018]. A direção da obra é do baiano Sérgio Machado e o protagonismo da série está sob o olhar meticuloso de Isis Valverde, como Maria Bonita e da força de atuação de Júlio Andrade como Lampião. Retrocedendo algumas décadas, o ponto alto da série é o Massacre de Angico, em 1938, que resultou na morte do casal e de quase todos que pertenciam ao grupo de cangaceiros. Rômulo Braga é o Coronel Silvério Batista, que empregou toda a sua vida em busca da captura de Lampião. Enquanto Maria Bonita rejeita um relacionamento submisso, sua chegada ao grupo de cangaceiros a eleva em representatividade e força feminina.
Um ponto certeiro da série é a humanização dos personagens. Não se trata de diminuir o impacto que o cangaço teve no Nordeste do Brasil e na política, na época liderada pelo Presidente Getúlio Vargas. Trata-se, antes de tudo, de contar a história sob o olhar humano e, desta vez, sob o humano que é mulher, feminino e mais sensível. Maria Bonita representa, nesta obra para TV, uma força que vai além dos afazeres do Cangaço e das invasões que o grupo provoca em cada cidadezinha que se achegam. A política dentro do Cangaço é diferente da que rege todo o restante do país. São leis mais severas, algumas desumanas e muito cruéis. Maria Bonita não se sente a vontade diante de tais regras do Cangaço, mas a visão feminina dentro do grupo é abafada pela autoridade do homem e a força machista.
O diretor de fotografia argentino, Adrian Teijido, que possui uma carreira consolidada no cinema, soube captar bem cada sentimento, tensão e emoções que se afloram em cada conflito. Teijido percebe que o foco em planos fechados, dando valor ao olhar, às armas, às grades, ao sangue derramado, no parto... é a grande força da obra. O trabalho dos produtores não desrespeita o contexto histórico e a série não é anacrônica como já vimos em outras tentativas de adaptação. Há amor no meio de violência como o estupro e o feminicídio, assim como também, estas mesmas cenas sabem atualizar o discurso para uma época em que a violência de gênero ainda ganha força num século que, mesmo emergente, ainda prevalece.
Além da ambientação do sertão, sempre seco e quente, tons amarelos e palha, percebemos o lugar de Lampião, que, sempre quando Maria Bonita está em cena, ele se posiciona atrás dela. Ela é quem conta a história, mesmo quando a força e o poder políticos estão nas mãos dele. Mas é Maria quem sabe ler, quem alerta o grupo em relação aos fatos. É ela quem se atenta aos jornais e às notícias. A sua força e seu poder estão num discurso não invasivo, mas que mexe com as estruturas de organização e atuação da política local. O título “Rainha do Cangaço” surge – de acordo com a narrativa que a série escolheu – ganha força e expressão dias antes de sua morte, na Fazenda Angicos, sertão de Sergipe. Mas é um título que confere dignidade e garante sua fama para as décadas seguintes. É bonito ver sua sobrinha que sonha em se tornar uma cangaceira igual à tia. Uma casa liderada por mulheres e que nós vemos, no rosto de cada uma delas, a dor e as alegrias de ser mulher onde moram.
Não é só uma história mítica que paira na memória do povo brasileiro – mais ainda do nordestino – mas é uma narrativa ágil em episódios rápidos que não ferem a jornada de nenhum de seus personagens. Os paralelos femininos que a série consegue nos mostrar são impecáveis e profundos. Um dos mais intensos é quando Maria Bonita e Lampião retornam à fazendo de um antigo amigo, já falecido para cuidar um pouco da saúde do cangaceiro. Liderada pela viúva Federalina [Laila Garin], uma antiga aliada, mas que sofre nas mãos dos cangaceiros quando descobre sua tentativa de golpe em Maria Bonita e Lampião. Assistimos a um dos melhores paralelos femininos: de um lado, uma cangaceira, com traços brutais, destes sujos, mãos calejadas, mulher de vocábulos rudes e chulos; do outro, uma lady da sociedade, mulher bilíngue, cantora de ópera, mãos finas e delicadas, cabelos bem penteados, sensível...
O sofrimento de Federalina é o traço genial da política exercida por Lampião no Cangaço. Vemos ali uma representação de algo que vai além da falsidade, mentira e da corrupção junto à má fé. Lampião, não mata sua antiga aliada, mas tira dela o que tem de mais belo e significativo em sua vida. Outro paralelo que nos enche de orgulho é com as irmãs, Maria Bonita e sua irmã Dondon: aqui o paralelo é mais visceral. Duas irmãs, de mesmo sangue, com sonhos diferentes, mas que uma respeita e se alegra com a vida da outra. Uma é dona do lar, a outra é dona do sertão; uma é mãe, a outra é rainha do cangaço; uma representa a mulher exemplar, a outra é a mulher que devemos sempre temer. A força da mulher é o fio condutor de todos os episódios e o ato central de toda a obra. Assistir a esta jornada sob novo ponto de vista é um deslumbre ao que o Brasil ainda tem pra nos ensinar.
Por Dione Afonso | Jornalista